Wednesday, November 29, 2006

A mesa vazia

De Chirico, Mélancholie hermétique
VERTIGEM
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Na circunstância da noite procuro o que resta
do ocaso: fragmentos de vermelho, o desenho
dos lábios no papel da memória, dedos
dobrando o fim do dia. Num sentido tão
preciso como a insistência do som, ouço
ainda a tua voz. Espalho-a nesta mesa
vazia, coberta pela toalha da obscuridade;
e recolho, por entre instantes de silêncio,
a sua entoação mais doce. Assim, chego
ao significado das coisas que estão para
além das palavras, como se não houvesse
aqui mais do que a vida, estremecendo
com a sua vibração de acasos, de encontros,
ou de uma decisão inexplicável contra a
inércia dos rumos. Não preciso, então, de
te dizer mais do que isto. O diálogo
chega ao fim, como esta noite, e a mesa
volta a ficar vazia, no centro do coração.
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Nuno Júdice, Geometria Variável, Lisboa, Dom Quixote, 2005, p.126.

Monday, November 27, 2006

Desert thoughts - 4

A mulher acreditou que talvez fosse possível chegar lá, apesar dos vários mundos que a separavam do desejado futuro dos seus passos. E talvez fosse possível, apesar do calor, da sede, do sol a pique e da violência da areia no perfil obtuso da hora. Talvez sim, talvez consiga, pensava ela, esquecendo por momentos que afinal transportava lá dentro, no oco mais oco de si, a carcaça já óssea do sangue. Mas aquilo na fotografia não é um esqueleto humano, disse o homem bem dentro da cabeça da mulher. Pois não, lembrou ela, é apenas o cadáver de um animal à beira de se tornar gente, porque é o corpo de alguém ainda com a ilusão dentro. É verdade que não chegou onde queria, coitado, tal como eu provavelmente também não chegarei, mas diz a História que o importante não é chegar onde se quer, o importante são as marcas que vamos deixando ao longo do caminho percorrido. A mulher olhou uma vez mais para a redondez da fenda aberta na areia, por detrás do corpo do animal com a ilusão dentro, e sorriu vagamente enquanto contemplava os vales profundos que guardava nas mãos.

Louvor e Simplificação de Mário Cesariny

Melancolia, António Dacosta (1942)

Era para estar aqui um poema em louvor do poeta, mas basta a melancolia do pintor e o nome simplificando o homem - Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006).

Saturday, November 25, 2006

Quando um homem se apressa para a ruína, os deuses ajudam

E de facto ajudaram. Depois de dois dias de colóquio sobre o tema da ruína, os deuses obedeceram ao apelo humano e fizeram de Aveiro o objecto privilegiado do seu castigo. A meio da tarde de ontem, os ramos das árvores começaram a levantar voo no severo caos do ar, num movimento inverso ao das gaivotas, que imediatamente abandonaram a convulsão da água e avançaram firmes na direcção da terra. Enquanto um colega dissertava sobre a tragédia de Ésquilo e sobre a dita ajuda dos deuses, ao apressar-se o homem para a ruína, olhei para fora através do vidro e lá estavam as gaivotas, pousadas na precária solidez da beira-ria e lado a lado com os patos, medrosamente agachados na erva e formando ao longe um perfil quase esférico de penas. Quando saí em busca do carro, o chão era um estranho tapete de guarda-chuvas, restos esgalhados de arbusto e folhas sem tronco atrás, tudo arrancado ao seu costumeiro aprumo pela fúria da chuva e do vento e pela (in)justa ira dos deuses. Não havia comboios, a estação de Aveiro parecia a foz do Ganges e os autocarros pareciam ter-se sumido no labirinto aéreo da tarde, juntamente com o cadáver vegetal das folhas. Colegas voltaram conformadamente para trás, de regresso ao hotel de onde tinham acabado de sair, outros encontraram milagrosas boleias, outro ainda teve uma avaria no carro e eu pus-me a caminho de casa, decidida a enfrentar a divina ironia de Zeus com o rolar prudente e vagaroso dos pneus. Dizem que Deus não dorme, mas às vezes ressona muito.

Wednesday, November 22, 2006

A casa

A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante

da que deixei pela manhã

no mundo

a água tomou o lugar de tudo

reúno baldes, estes vasos guardados

mas chove sem parar há muitos anos

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Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai

uma viagem se deu

entre as mãos e o furor

uma viagem se deu: a noite abate-se fechada

sobre o corpo

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Tivesse ainda tempo e entregava-te

o coração

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José Tolentino Mendonça, A Que Distância Deixaste o Coração.

Tuesday, November 21, 2006

Dr. House

Já lá vai o tempo em que o canal Fox exibia todos os fins de tarde um novo episódio da série Dr. House, que muitas vezes me fez chegar mais cedo a casa. Depois a TVI passou a exibi-la à improvável hora dos bons programas e eu perdi-lhe um pouco o rasto ... até há pouco, uma vez que os indefectíveis da série, entre os quais eu me incluo, passam a ter agora ao alcance de uns quantos euros os 22 episódios inteirinhos da primeira temporada. Não, não digam que Dr. House é uma série de hospital, apesar do seu espaço ficcional corresponder efectivamente ao de um hospital. Porque aqui não é preciso esventrar criaturas nem exagerar na visibilidade do sangue para que o efeito de real perdure - basta apenas o espectáculo da inteligência e a finura do humor evidenciados pela série, associados à inacreditável personagem que é Gregory House, um verdadeiro eremita com muita pena da sua solidão. Para as mulheres, House representa nada mais nada menos que o princípio da perdição: é bonito e sensual, mas é sobretudo detentor daquela pose rafeira de cão sem dono que logo estimula no sexo oposto o estúpido desejo de protecção, que é onde sempre mora o perigo. Mas o House é, felizmente, apenas uma figura de ficção, de modo que me permiti oferecê-lo a mim própria como presente de Natal. Ontem trouxe-o da Fnac e é com ele que vou passar o meu serão, já já a seguir. Chhhhh! O House vem aí...

Saturday, November 18, 2006

Desert thoughts - 3

Monument Valley

OCRE
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O manto de deus envolve-me o ocre.
Inclino o céu para oriente, ao arrepio de tudo.
Sobre mim deslizam as colinas
e o líquido azul por entre as nuvens.
Velam-se as rochas na tarde
que exala o abismo - e arde.
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Isabel Cristina Pires, Deserto Pintado, Lisboa, Caminho, 2006.

Thursday, November 16, 2006

A ferro e fogo (lento)

Do realizador coreano Kim Ki-Duk, o filme 3-iron retoma algo de fundamental do anterior Spring, Summer, Fall, Winter... Spring: o entendimento do tempo como um devir absolutamente inexpugnável e a sua vivência como íntima construção do homem. Mas 3-iron não é propriamente um filme sobre o tempo e os seus efeitos, como o era Spring..., mas um filme sobre a solidão dos homens e o papel do silêncio na denúncia e/ou sublimação dessa mesma solidão. Tae-suk vagueia pelas ruas na sua mota em busca de casas temporariamente desabitadas onde possa viver sozinho a ficção de uma família, fazendo-se retratar ao lado das fotografias que vai encontrando de casa em casa e refazendo as tarefas domésticas de quem não está para que ele possa estar - lavar a roupa suja e consertar electrodomésticos avariados. Não, não me parece que o faça numa tentativa de retribuir a involuntária hospedagem dos proprietários, mas de modo a tentar estabelecer com o espaço simbólico do lar uma ambígua forma de pertença. Até que Tae-suk encontra Sun-hwa numa dessas casas, uma bela mulher maltratada pelo marido e que parte com ele em busca da mesma ficção que impulsionava as solitárias derivas de Tae-suk. A experiência conjunta da rotina doméstica, vivida nas casas por onde vão passando, acaba por sedimentar em ambos o lento trabalhar da maior e da mais silenciosa de todas as ficções - o amor, um amor integral que a mútua solidão acabou por converter em destino para a vida. Mas dito isto é como se não tivesse dito nada, porque isto não é na verdade o filme, mas apenas o motivo dele. O verdadeiro filme está na elegantíssima exploração do implícito e do não-dito como factor primordial de intensificação da intimidade entre Tae-suk e Sun-hwa; está na terrível beleza da música de Natacha Atlas, que acompanha a progressiva aproximação dos futuros amantes como se fosse uma espécie de íntima rima das almas, em trânsito convergente para o mesmo inevitável centro; está no sábio movimento das bolas de golfe à roda do ferro nº3 - desde a lentidão com que a bola é inicialmente trocada entre Tae e Sun (e este é talvez o seu único "diálogo" ao longo do filme) à violência que depois lhe imprimem tanto o próprio Tae como o enciumado marido de Sun. E está sobretudo, mas sobretudo, nos belíssimos momentos finais em que não existe nem o fantástico nem o fantasmático, porque existe apenas a encenação de uma muito rara capacidade - a de vivermos o amor apenas dentro de nós quando o outro nos falta e tudo é para nós como se não faltasse. Porque o amor resume-se afinal a um imóvel ponteiro de balança pousado no zero, com um imaginário prato em cima a tentar suportar o peso imaterial do coração.

Wednesday, November 15, 2006

O poema

Trey, Silent Poem II
Hoje devia estar aqui um poema. E está.

Tuesday, November 14, 2006

Desert thoughts - 2

A mulher chegou-se à janela e passou a cortina branca para trás da cabeça, encostando muito o nariz ao vidro. Nem era bem um vidro, era um pequeno espelho mudo que de vez em quando lhe permitia atravessar a estrada para o lado de lá, onde acabava a cidade e o deserto começava. Pousou maquinalmente a mão na lisa superfície do vidro e verificou sem surpresa que estava morna. Seria, como sempre, dos raios ainda oblíquos da manhã ou então da nocturna respiração das paredes, saturadas que estavam do hálito difícil e pegajoso do homem. A mulher soprou ao de leve na incerta direcção do deserto e uma nuvem de pequenas gotas colou-se ao fundo luminoso da tela. Com o dedo indicador desenhou a medo a brusca linha dos montes e só depois a fundura horizontal da terra, com o olhar vazio de quem já não espera a fortuna irreal do movimento. Eu pertenço ali, disse para si a mulher, pertenço ao lume intenso daquele frio e à pura incandescência da hora, ao grito agudo dos ventos e ao redondo desamparo das pedras. Ao eterno abandono do tempo, à desolação final dos bichos e ao côncavo silêncio da terra. Eu pertenço ali. O relógio gemeu timidamente as horas, vibrando um desacerto de madeiras no ninho invisível da parede, e a mulher atravessou novamente a estrada, agora na direcção contrária e galgando atabalhoadamente, na estudada pressa dos chinelos, o pequeno muro logo a seguir à relva. Um branco trejeito de renda voltou a cair sobre a face vidrada do espelho e a mulher foi-se aos poucos afastando, esquecendo por momentos a janela onde faiscavam agora pequenos cristais de areia, acabando por se perder definitivamente nos densos e obscuros corredores da casa.

Monday, November 13, 2006

Another brick in the wall


Amanhã é segunda-feira. Demasiadas horas de aula, demasiados alunos, demasiado tudo até bem ao início da noite. No fim a cabeça esvaída, o sopro rouco da voz, a estranha sensação de já nada ter cá dentro, depois de tanta coisa dada a tanta gente. Segunda-feira. Mais uma. E menos uma depois.

Sunday, November 12, 2006

Pequeno contributo para uma blogoética

Mosaico de Conímbriga
Há cerca de dois dias atrás, José Pacheco Pereira publicou nas páginas do Público um artigo que (estou certa) não terá deixado indiferentes algumas das pessoas que povoam o imenso labirinto da blogoesfera. «A diferença entre um quiosque e a blogoesfera», assim se chama o texto do nosso historiador, inteligente como sempre. Aparentemente despoletado pelos recentes episódios vividos por Miguel Sousa Tavares e Eduardo Prado Coelho, o artigo deriva depois para as razões do lixo e do luxo que todos os dias circula por aí em forma de blogue. Pacheco Pereira fala em 90% de lixo e em 10% de luxo, mas confesso que não é propriamente a questão das percentagens que aqui me importa. Que é infinitamente mais elevada a mediocridade do que a excelência? Pois claro que sim, tal como acontece em qualquer outro domínio onde intervenha a mão humana, a começar pela comunicação social que temos e a acabar na literatura que produzimos. O problema maior está, parece-me, na incontrolável desresponsabilização da palavra possibilitada pelo blogodiscurso, por oposição à ainda relativa responsabilidade imputável à palavra impressa. Como lembra o próprio Pacheco Pereira, «os jornais e as revistas têm responsáveis e não são como as cartas anónimas, ou os blogues que funcionam como cartas anónimas». Porque a acrescentar ao lixo da mediocridade, há ainda o lixo da anonímia que atinge blogues inteiros («os degraus superiores do inferno») e caixas de comentário inseridas em blogues assinados («as furnas da Internet»). Uma coisa e outra contradizem uma ética que não o é apenas da blogoesfera, porque o é, antes de mais, da própria escrita. E a ética da escrita exige que nos lembremos sempre que as palavras levam pessoas dentro e que essas pessoas têm um nome. Mais, que essas pessoas têm que ter nome se queremos preservar um sentido mínimo de decência no uso que fazemos das palavras. Pessoalmente, e porque as palavras me merecem um imenso respeito, nunca me passou pela cabeça, no momento de criar este blogue, ocultar o meu nome atrás de um pseudónimo, ou atrás de qualquer outro artifício que me permitisse escrever (ou comentar o que outros escrevem) na cobardia da sombra. A anonímia é inimiga da blogoética não porque os bloguistas anónimos possam escrever ultrajes ao seu abrigo (como no caso que envolveu M. Sousa Tavares), mas porque mesmo no momento do louvor é inimiga do sentido de ética que deveria marcar a vida dos homens. Por isso a caixa de comentários dos meus posts está actualmente vazia. É uma forma de protesto pela irresponsabilidade (chamemos-lhe assim) de quem ousa escrever sem o seu nome por trás.
À condenação da anonímia eu acrescentaria ainda a defesa do direito à pura ficção na blogoesfera. Na verdade, convencionou-se que um blogue era uma espécie de diário online, introduzindo-se, assim, no espírito das pessoas a convicção de que nele só poderia vigorar o mesmo princípio que atinge o seu autor na vida quotidiana - a real autenticidade dos factos, vividos ou imaginados. Nada mais falso, ou melhor, nada mais saudavelmente falso e pela mesma razão que levou Vergílio Ferreira a advertir da sua completa insinceridade no diário que escreveu e do seu muito maior despudor no romance: «A ficção lança uma cortina disso mesmo à nossa volta e defendidos por ela dizemos tudo. Quem escreve uma carta ou um diário sabe que se pressupõe que se vai dizer a verdade. E isso mobiliza logo em nós uma estratégia de defesa. O diarista, portanto, mais que o ficcionista, controla os meios e modo de expressar-se para que esta confissão - que sabe irá julgar-se "verdadeira" - seja apenas aquilo que ele quer que seja.» Touché. De modo que, com os olhos postos na sabedoria do mestre, continuarei aqui a escrever as minhas pequenas ficções (ao lado de breves apontamentos que não o são tanto), mais do que a escrever-me a mim própria nas ficções que escrevo, até porque é também por esse caminho que se busca a «respiração da verdadeira literatura», como tão simpaticamente se referiu ao conteúdo deste meu blogue o autor do Auto-retrato (http://retrato-auto.blogspot.com).

Saturday, November 11, 2006

Poema dos remotos vestidos




Michael J. Austin, Black Drape

NUDEZ

Vertical, pelo corpo
a nudez principia
como a primavera no tempo
ou a luz junto dos olhos.

Pressentida verdade
que nos une. Em silêncio
regressamos à origem
dessa praia longínqua.

Ali, nenhuma imagem
altera o seu destino.
Como um fruto, procura
a direcção da terra.

Apenas as nossas mãos
ignoradas desprendem
os cabelos: memória
de remotos vestidos.

Fernando Guimarães, Poesias Completas, vol. I, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 49.

Thursday, November 09, 2006

Memória dos remotos vestidos

Era já de noite quando a mulher saíu de casa. Levava nos passos a suspeita de um encontro nupcial e foi assim que parou, com a pele à flor da hora, na concha listrada da última rotunda. Uma farda de polícia com barriga dentro, indiferente ao difícil trânsito do amor, parou-lhe logo ao lado e mandou-a seguir friamente o seu caminho - que não, que não podia estar ali -, de modo que a mulher deu mais duas voltas ao compasso exacto da rotunda, procurando nervosamente o homem na pressa tardia dos faróis, por entre o nocturno cansaço dos vastos fumos urbanos. Àquela hora os automóveis já não tinham cor, eram apenas dois imensos olhos, acesos de luz, que a cada passagem iam cegando a lenta espera da mulher. Mais tarde, de novo em casa e em face do mútuo desalinho da roupa, a mulher lembrou-se do último verso de um poema muito seu e sorriu ao de leve, repetindo só para si a memória dos remotos vestidos. Às vezes a vida tem coisas muito bonitas, disse o homem, olhando sem medo a fundura dos olhos da mulher. Mas depois o medo voltou e o homem ausentou-se um pouco, de olhos fechados e vagamente desconfiado da bondade divina do milagre. A mulher percebeu mas nada disse - se ele não tivesse medo não estaria aqui, pensou. E apertou-o mais contra si.

Wednesday, November 08, 2006

Ana carolina & Seu Jorge

É isso aí. Ana Carolina é felizmente uma descoberta antiga, desde os seus tempos de "Trancado", "Nada para mim" ou "A canção tocou na hora errada". É exemplar o poder da sua voz e a elegância absolutamente implacável das suas composições. Isso e muito mais fizeram o extremo sucesso do ainda recente Estampado. Uma Ana Carolina em grande forma, mostrando à saciedade por que é por muitos actualmente considerada uma das melhores (senão a melhor) vozes femininas do Brasil. Pois recentemente saíu o album de um seu concerto, juntamente com Seu Jorge. É isso aí e este é justamente o título da mais bela música que pude ouvir em muito tempo, numa parceria mais que perfeita entre feminino e masculino. Como cantam Ana e Jorge, eu não sei parar de te olhar.

Sunday, November 05, 2006

Desert thoughts - 1

Deserto da Namíbia
Deve haver algures uma ciência (in)certa do deserto, embora dela eu nada saiba ainda. Todavia, há espaços que, existindo, é como se me chamassem para o infinito novelo de si próprios. O meu deserto de nunca é o da trémula vertigem do silêncio, aquele que é quebrado apenas pela fundura dos passos que deixamos na areia e pelo bater desencontrado do coração, procurando no desalinho das veias a derradeira voz do sangue. Mas o deserto não pode ser logo essa visão total da infinitude - ele tem que nos ir crescendo pouco a pouco, seguindo de perto a lenta perfuração do olhar e a invenção dessa companhia de raízes que, em meio do nada irradiante, em nós nos vamos descobrindo. A verdadeira metafísica deve ter nascido aí.

Saturday, November 04, 2006

No recato da oração

Há muitos anos, num concerto de Caetano Veloso, um amigo meu (que era amigo de um amigo do próprio Caetano, também ali presente) perguntou-me no fim do espectáculo se eu gostaria de ir ao camarim falar um pouco com ele. Imediatamente tremi de terror, não porque receasse o que quer que fosse, mas apenas porque amava de mais o Caetano para isso. Por que diabo me haveria de interessar o homem por detrás do mito? Continuei, pois, a amá-lo através da distância necessária ao encantamento e até hoje a nossa relação não sofreu a mais pequena mácula. Ora, vem isto a propósito de ter eu há pouco lido, numa página do Público, o anúncio da presença de Lobo Antunes na Bertrand de um centro comercial de Coimbra. Amanhã, às quatro e meia da tarde. Instantaneamente, pus-me a pensar no que leva as pessoas a acotovelarem-se, agitadas e com o colo grávido de livros, em frente de um homem sentado atrás de uma secretária, de esferográfica em riste. É que ali não está o escritor, está apenas um homem que não tem, naquelas circunstâncias, provavelmente nada a dizer-lhes, a não ser que está ali para assinar os livros de um outro senhor realmente muito parecido consigo e que tem, imagine-se, o incrível vício de escrever livros. Por isso o meu escritor não descerá da estante amanhã, porque não creio que seja possível falar com ele a sério longe da sua particular oficina de escrita. E mesmo aí (ou sobretudo aí), como qualquer outro intruso, eu estaria já obviamente a mais. O que lhe diria eu, se por milagre me fosse mesmo possível vaguear por ali, como fazem as suas personagens? Provavelmente apenas isto - os seus livros ajudam-me a viver. Mas isto já ele deve saber, não porque o saiba de mim, mas porque sabe que é para isso que escreve - para poder viver e para ajudar os outros a viver. De modo que, por uma questão ou por outra, parece-me bem melhor ficar calmamente em casa, do lado de dentro da chuva, substituindo (com o gosto acrescido do pecado consumado) o que deveria estar a ler pelo que me apetece de facto ler, e abrir a sua Babilónia como quem se prepara para o doce recato da oração. Um livro redundante, dizem, um intervalo na sua obra ímpar, como ainda hoje li. Talvez, talvez. Mas mesmo que o seja, um intervalo é sempre mais um degrau na árdua escalada do verbo, até porque num escritor integral, como António Lobo Antunes, os intervalos não podem viver-se na total privação da palavra, mas na contínua e dolorosa maceração da escrita.

Thursday, November 02, 2006

Nespereira


Nespereira não estava assim, com o azul de Agosto sobre a Serra, mas o ar era ainda morno, levemente dourado das manchas de cobre nas folhas das videiras. A laje estava vazia do trabalho humano - nem grão, nem milho, nem a voz estrepitosa das mulheres ecoando no espaço. Havia silêncio e neblina e ainda o cimo impreciso da serra, aparecendo a espaços por entre a massa escura do céu, como se flutuasse no mar leitoso e sem peso das nuvens. Em casa um cheiro inesperado a casa habitada, morno também e confortável como um braço onde finalmente repousasse. Quando lá voltar, no Natal, já a súbita navalha do frio terá aquietado pessoas e rebanhos, revolvendo nervosamente o ar com o cheiro a lenha e a fumo das lareiras. Entrarei em casa, porei as mãos em concha viradas para o lume e direi apenas que está bem.