Sunday, January 21, 2007

Fiama, o olhar total

Tantos poetas morreram, em minha vida,
antes de mim, não só no sangue ou só na carne,
mas na portuguesa língua.
Deles fica a obra que fizeram.
Todavia vocábulos, para sempre
insonoros, ou no futuro incriados,
demonstram que os poetas todos
morrem sempre mais na língua.
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Fiama Hasse Pais Brandão, Cenas Vivas, Lisboa, Relógio d'Água, 2000.
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(Não fui lá, como há anos prometi que iria, porque não fazia sentido já que fosse.)

Saturday, January 20, 2007

A primeira manhã

A mulher virou-se devagar para o homem e disse-lhe baixinho empresta-me os teus olhos. Ensina-me como se move na água o perfil dos barcos, como anoitece no ocre das casas o pequeno ramo da luz, qual o cheiro dos limos no eco mais fundo da noite. Dá-me a cidade de ti. E o homem respondeu-lhe dou-te os meus olhos se neles estiverem também os teus, porque são eles agora que me ajudarão a ver. A mulher sorriu e reclinou ao de leve a cabeça no ombro do homem, apertando bem o casaco contra a insidiosa lâmina do ar. É noite, está frio, disse o homem, vamos embora. A mulher nada disse, até que a porta do quarto se fechou finalmente sobre os dois, num silêncio de casulo que rarefazia o ar. Deixa-me atravessar a porta do teu corpo para o lado de lá, pediu ela. Sabias que um corpo é uma porta, não sabias? Uma porta sobre outra porta ainda? Sim, respondeu ele, abre então esta minha porta, feita de ossos, pele e músculos, que há tanto tempo eu te esperava no mapa das cidades invisíveis. Eu sou um pouco as portas que tenho, disse por sua vez a mulher. Nenhum dos dois disse mais nada e muito tempo depois, ao primeiro acorde, ainda tímido, da luz, a mulher espreitou atenta o sono do homem, levantou-se e foi abrir a janela sobre o canal, ainda escuro sob o trémulo desenho das casas. Ficou por momentos imóvel, de olhos fixos no percurso ascendente da luz, e depois repetiu para si, ecoando em silêncio as palavras do mestre: «esta é a primeira manhã do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que o casario de oeste encara cheio de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.»

Wednesday, January 17, 2007

O pronome

Italic Paul Klee, New Harmony, 1936

É isto mesmo que é preciso, uma nova harmonia. E harmonia não é aqui bem um "nome", é um quase "pronome", porque está em vez do nome. De qualquer outro nome.

Sunday, January 14, 2007

Auto-retrato

Serra da Estrela, 22 de Dezembro de 2006
No início fugia-nos por entre as mãos, mas no início era o Verão, ou o Outono, ou mesmo já o Inverno, porém ainda sem o gume do frio cortando a fatia invisível do ar - o estado líquido de ser. Depois, gota a gota, o ritmo perdeu-se na cadência regressiva do termómetro, como um corpo humano que de repente perdesse o pulso - a paragem do sangue, por entre as ervas descarnadas saídas da negra dureza do granito. A fotografia, que normalmente fixa na lente o andamento fugidio da matéria, não suprime aqui o sentido real do movimento, paralisando o fluir da água no exacto momento do disparo: esta imagem reproduz apenas a fotografia que o mundo a si próprio se tirou, num auto-retrato involuntário de quem só se limita a ser, uma vez que a natureza não age, a natureza apenas é. A fotografia já lá estava antes do fotógrafo chegar. Como se vê, o mundo passa muito bem sem nós.