Wednesday, October 17, 2007

O centro da terra - 4, ou variação sobre rosas no dia dos teus anos

Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama-se no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Nuno Júdice, Pedro, lembrando Inês, Lisboa, D. Quixote, 2001, p. 11.

Friday, October 12, 2007

O centro da terra - 3. O lenço

Egon Schiele, Girl with yellow scarf
Tinham ficado a olhar em silêncio um para o outro, depois do amor. A mão do homem descia lenta pelo cabelo da mulher, uma vez e outra e outra, numa carícia quase aérea ao rés da face, e nesse momento a mulher soube que nunca mais poderia ser tocada por outras mãos. Mergulhou mais fundo nos olhos do homem, para ouvir melhor o que ele calava, e depois sorriu ao de leve para si, aninhando-se na concha morna dos seus braços. Preciso que deixes comigo alguma coisa tua, disse a mulher, para me guiar nos dias, talvez anos, que virão. Prometo que se assim for te procuro, disse o homem, só não sei como fazer agora para voltar ao inferno do mundo, às pessoas em redor, aos objectos, à baça luz das coisas. A mulher não lhe respondeu - também ela sentia essa mesma espinha de aço a atravessar-lhe o coração. O homem deixou-lhe duas fotografias e um lenço, que a mulher soube logo que passaria a usar, prolongando o calor da sua mão, como se de uma aliança se tratasse. Não importa que seja daqui a meses, ou anos, muitos anos, pensou ela, aqui estarei à tua espera como só tu sabes que estarei. E o homem soube, no horror do adeus, como isso era rigorosamente verdade.