Saturday, November 25, 2006

Quando um homem se apressa para a ruína, os deuses ajudam

E de facto ajudaram. Depois de dois dias de colóquio sobre o tema da ruína, os deuses obedeceram ao apelo humano e fizeram de Aveiro o objecto privilegiado do seu castigo. A meio da tarde de ontem, os ramos das árvores começaram a levantar voo no severo caos do ar, num movimento inverso ao das gaivotas, que imediatamente abandonaram a convulsão da água e avançaram firmes na direcção da terra. Enquanto um colega dissertava sobre a tragédia de Ésquilo e sobre a dita ajuda dos deuses, ao apressar-se o homem para a ruína, olhei para fora através do vidro e lá estavam as gaivotas, pousadas na precária solidez da beira-ria e lado a lado com os patos, medrosamente agachados na erva e formando ao longe um perfil quase esférico de penas. Quando saí em busca do carro, o chão era um estranho tapete de guarda-chuvas, restos esgalhados de arbusto e folhas sem tronco atrás, tudo arrancado ao seu costumeiro aprumo pela fúria da chuva e do vento e pela (in)justa ira dos deuses. Não havia comboios, a estação de Aveiro parecia a foz do Ganges e os autocarros pareciam ter-se sumido no labirinto aéreo da tarde, juntamente com o cadáver vegetal das folhas. Colegas voltaram conformadamente para trás, de regresso ao hotel de onde tinham acabado de sair, outros encontraram milagrosas boleias, outro ainda teve uma avaria no carro e eu pus-me a caminho de casa, decidida a enfrentar a divina ironia de Zeus com o rolar prudente e vagaroso dos pneus. Dizem que Deus não dorme, mas às vezes ressona muito.

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