Tuesday, November 14, 2006

Desert thoughts - 2

A mulher chegou-se à janela e passou a cortina branca para trás da cabeça, encostando muito o nariz ao vidro. Nem era bem um vidro, era um pequeno espelho mudo que de vez em quando lhe permitia atravessar a estrada para o lado de lá, onde acabava a cidade e o deserto começava. Pousou maquinalmente a mão na lisa superfície do vidro e verificou sem surpresa que estava morna. Seria, como sempre, dos raios ainda oblíquos da manhã ou então da nocturna respiração das paredes, saturadas que estavam do hálito difícil e pegajoso do homem. A mulher soprou ao de leve na incerta direcção do deserto e uma nuvem de pequenas gotas colou-se ao fundo luminoso da tela. Com o dedo indicador desenhou a medo a brusca linha dos montes e só depois a fundura horizontal da terra, com o olhar vazio de quem já não espera a fortuna irreal do movimento. Eu pertenço ali, disse para si a mulher, pertenço ao lume intenso daquele frio e à pura incandescência da hora, ao grito agudo dos ventos e ao redondo desamparo das pedras. Ao eterno abandono do tempo, à desolação final dos bichos e ao côncavo silêncio da terra. Eu pertenço ali. O relógio gemeu timidamente as horas, vibrando um desacerto de madeiras no ninho invisível da parede, e a mulher atravessou novamente a estrada, agora na direcção contrária e galgando atabalhoadamente, na estudada pressa dos chinelos, o pequeno muro logo a seguir à relva. Um branco trejeito de renda voltou a cair sobre a face vidrada do espelho e a mulher foi-se aos poucos afastando, esquecendo por momentos a janela onde faiscavam agora pequenos cristais de areia, acabando por se perder definitivamente nos densos e obscuros corredores da casa.

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