Wednesday, December 13, 2006

Marilyn

De mim para ti - disse a mulher -, até ao fim do mundo que me deste. E o homem sorriu.

Sunday, December 10, 2006

O veado

A Rainha, de Stephen Frears. Como sempre, na primeira fila até se apagarem as luzes e depois umas filas mais atrás, de modo a não ter ninguém entre mim e o ecrã. A citação inicial de Shakespeare («uneasy lies the head that wears a crown», do Henrique IV) já tinha dado um pouco o tom - o do dilema entre o público e o privado, o dever e o sentimento, a responsabilidade e a defesa do humano -, embora só muito mais tarde a densidade psicológica da rainha acabe por se revelar ao espectador. Não, este não é um filme sobre a tumultuosa semana anterior ao funeral de Diana, nem sobre a forma como a família real inglesa reagiu ao inesperado do acontecimento: é um filme sobre o peso espartilhante da coroa na vida de uma mulher, tomando como motivo directo as consequências geradas pelo fatídico acidente de Paris. E esse peso não é coisa que possa mostrar-se para espectador ver, porque é tudo menos simples, como afirmava Geraldine Chaplin no fim de um filme muito meu - «Eu sou professora de ballet e posso garantir-lhe que nada é simples». De facto, é preciso ler um pouco para lá do concreto da imagem, espreitando insidiosamente o reverso das duas extraordinárias cenas do veado (primeiro a da sua liberdade, depois a da sua captura), onde está em síntese todo o percurso biográfico de abdicação da rainha, irrepreensivelmente interpretada por Helen Mirren. Nunca saberemos se foi assim que tudo realmente sucedeu, mas isso não importa, porque se não foi assim poderia perfeitamente ter sido, até porque este exercício de indagação ficcional da verdade é quase tão importante para a eventual fixação da mesma como a narrativa exacta dos factos. Como quase sempre me acontece, do filme de Frears ficou-me sobretudo uma imagem - a do veado passeando tranquilo pelos campos da Escócia e a da comoção da rainha ao olhar para ele. Um filme em grande.

Tuesday, December 05, 2006

05.12.2006 (O início)

05.12.2006 (Balanço)

BALANÇO
Que fica de quem passa? Um eco de mágoa
ao ouvido da tarde? Uma pausa de palavras
na frase do instante? Uma interrupção de passos
a caminho da porta? Um sal de sentimento
no coração da amada? A vida esfarelada
numa dissipação de rumos? Ou um peso
de esquecimento na sombra da memória?
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Mas quem passa não pensa no que fica,
se os passos o levam para onde espera
ficar; e se o seu destino é a passagem,
onde ficar é sair de onde não chegou a
habitar, é o tempo que o obriga a não olhar
para onde não há-de voltar, mesmo que aí
tenha deixado o que pensou consigo levar.
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Náufrago sem ilha nem barco, ou
marinheiro preso ao porto, é ele o seu próprio
fim, como se a cada momento não soubesse
que não é dele o que leva, e só é dele o
que perde, como se o não quisesse guardar,
para que chegue mais depressa, ao cair da noite,
a esse cais onde ninguém o irá esperar.
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E repete, então, o que não devia fazer, para tudo
fazer de novo, como se tivesse de o fazer.
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Nuno Júdice, As coisas mais simples, Lisboa, Dom Quixote, 2006, p.52.

Sunday, December 03, 2006

A roupa das pestanas

Às vezes a elegância não é mais do que um leve poisar de olhos. Tiremos-lhe o chapéu, a negra esquadria do vestido e veremos que continua vestida. O olhar, o olhar. A ver se me lembro disto daqui a dias, quando também eu tiver que vestir a alma com a requintada roupa das pestanas.

Friday, December 01, 2006

Roleta russa

Odilon Redon, The Closed Eyes
Era uma mulher ainda jovem e esperara pacientemente no passeio que o sinal ficasse verde para os carros. Quando parei à sua frente, ela avançou um passo convicto no largo xadrez da passadeira e fechou os olhos com força, atravessando o mármore preto e branco do asfalto sem sequer soerguer as pestanas. Não sei se fechou os olhos para não ver o carro que cruzou apressado o claro adesivo das riscas ou se, pelo contrário, os fechou na vã esperança de ser apanhada por ele. Foi uma estranha roleta russa, sem balas nem canos de armas, mas com ferros, motores e a pressa redonda dos pneus. Quando a mulher atingiu o passeio oposto, abriu os olhos e continuou calmamente o seu caminho, tão serena como se levasse o destino na concha bordada das mãos.