Saturday, November 04, 2006

No recato da oração

Há muitos anos, num concerto de Caetano Veloso, um amigo meu (que era amigo de um amigo do próprio Caetano, também ali presente) perguntou-me no fim do espectáculo se eu gostaria de ir ao camarim falar um pouco com ele. Imediatamente tremi de terror, não porque receasse o que quer que fosse, mas apenas porque amava de mais o Caetano para isso. Por que diabo me haveria de interessar o homem por detrás do mito? Continuei, pois, a amá-lo através da distância necessária ao encantamento e até hoje a nossa relação não sofreu a mais pequena mácula. Ora, vem isto a propósito de ter eu há pouco lido, numa página do Público, o anúncio da presença de Lobo Antunes na Bertrand de um centro comercial de Coimbra. Amanhã, às quatro e meia da tarde. Instantaneamente, pus-me a pensar no que leva as pessoas a acotovelarem-se, agitadas e com o colo grávido de livros, em frente de um homem sentado atrás de uma secretária, de esferográfica em riste. É que ali não está o escritor, está apenas um homem que não tem, naquelas circunstâncias, provavelmente nada a dizer-lhes, a não ser que está ali para assinar os livros de um outro senhor realmente muito parecido consigo e que tem, imagine-se, o incrível vício de escrever livros. Por isso o meu escritor não descerá da estante amanhã, porque não creio que seja possível falar com ele a sério longe da sua particular oficina de escrita. E mesmo aí (ou sobretudo aí), como qualquer outro intruso, eu estaria já obviamente a mais. O que lhe diria eu, se por milagre me fosse mesmo possível vaguear por ali, como fazem as suas personagens? Provavelmente apenas isto - os seus livros ajudam-me a viver. Mas isto já ele deve saber, não porque o saiba de mim, mas porque sabe que é para isso que escreve - para poder viver e para ajudar os outros a viver. De modo que, por uma questão ou por outra, parece-me bem melhor ficar calmamente em casa, do lado de dentro da chuva, substituindo (com o gosto acrescido do pecado consumado) o que deveria estar a ler pelo que me apetece de facto ler, e abrir a sua Babilónia como quem se prepara para o doce recato da oração. Um livro redundante, dizem, um intervalo na sua obra ímpar, como ainda hoje li. Talvez, talvez. Mas mesmo que o seja, um intervalo é sempre mais um degrau na árdua escalada do verbo, até porque num escritor integral, como António Lobo Antunes, os intervalos não podem viver-se na total privação da palavra, mas na contínua e dolorosa maceração da escrita.

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