
Há muitos anos, num concerto de Caetano Veloso, um amigo meu (que era amigo de um amigo do próprio Caetano, também ali presente) perguntou-me no fim do espectáculo se eu gostaria de ir ao camarim falar um pouco com ele. Imediatamente tremi de terror, não porque receasse o que quer que fosse, mas apenas porque amava de mais o Caetano para isso. Por que diabo me haveria de interessar o homem por detrás do mito? Continuei, pois, a amá-lo através da distância necessária ao encantamento e até hoje a nossa relação não sofreu a mais pequena mácula. Ora, vem isto a propósito de ter eu há pouco lido, numa página do
Público, o anúncio da presença de Lobo Antunes na Bertrand de um centro comercial de Coimbra. Amanhã, às quatro e meia da tarde. Instantaneamente, pus-me a pensar no que leva as pessoas a acotovelarem-se, agitadas e com o colo grávido de livros, em frente de um homem sentado atrás de uma secretária, de esferográfica em riste. É que ali não está o escritor, está apenas um homem que não tem, naquelas circunstâncias, provavelmente nada a dizer-lhes, a não ser que está ali para assinar os livros de um outro senhor realmente muito parecido consigo e que tem, imagine-se, o incrível vício de escrever livros. Por isso o meu escritor não descerá da estante amanhã, porque não creio que seja possível falar com ele a sério longe da sua particular oficina de escrita. E mesmo aí (ou sobretudo aí), como qualquer outro intruso, eu estaria já obviamente a mais. O que lhe diria eu, se por milagre me fosse mesmo possível vaguear por ali, como fazem as suas personagens? Provavelmente apenas isto - os seus livros ajudam-me a viver. Mas isto já ele deve saber, não porque o saiba de mim, mas porque sabe que é para isso que escreve - para poder viver e para ajudar os outros a viver. De modo que, por uma questão ou por outra, parece-me bem melhor ficar calmamente em casa, do lado de dentro da chuva, substituindo (com o gosto acrescido do pecado consumado) o que deveria estar a ler pelo que me apetece de facto ler, e abrir a sua Babilónia como quem se prepara para o doce recato da oração. Um livro redundante, dizem, um intervalo na sua obra ímpar, como ainda hoje li. Talvez, talvez. Mas mesmo que o seja, um intervalo é sempre mais um degrau na árdua escalada do verbo, até porque num escritor integral, como António Lobo Antunes, os intervalos não podem viver-se na total privação da palavra, mas na contínua e dolorosa maceração da escrita.
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