Saturday, September 30, 2006

A sede dos dias imortais

O ACTO MALÉFICO DE SER

É um destino estranho
ter as mãos que matam o amor
ou a peçonha que desama o ser amado. O outro
mirra pelo tempo, por entre crueldades
que desempenhou tão bem, tão sem saber. O outro, o divino,
o deslumbrante, o tal. O que é investido como um nobre
e útil como um deus, e denso, e tão
miraculante de paixão. E o pobre, que é apenas

vivo e homem, vai inexistindo entre protestos
de ser. Evaporado no escuro, desaparece em nódoas
de amizade, que nunca
possuo pelo tempo, não sou aniquilada
o dia inteiro - só às vezes me convenço
que ele existe, maléfica mulher devoratriz
de carne, com sede de dias
 imortais.

Isabel Cristina Pires, Todas as Cores do Azul, Lisboa, Caminho, 2001, p.77.
Todas as páginas já tão lidas e relidas e de repente surge um poema ainda virgem de sentido. Aconteceu em seta e a luz destas palavras passa devagarinho para a luz dos dias.

Friday, September 29, 2006

On the road to nowhere

Agosto ia a meio e de dia os afazeres eram outros: pôr vaselina nos móveis antigos, forrar gavetas nunca antes forradas, resgatar do caos uma obscura colecção de selos e reordenar com método uma biblioteca do fim-do-século. Entre o riso e o brio de quem se propõe, em poucos dias, reordenar o mundo, o tempo corria fácil para as duas mulheres: no acongego alegre da família, entre contínuos pratinhos de arroz doce e o requeijão recém-coalhado, a queijeta artesanal e a massa folhada feita na hora, passaram uma semana na concha inebriante da casa, quase sempre de portadas corridas por causa do sol, implacável de luz na quietude granítica da laje. Ao anoitecer, porém, saíam ambas a pé, de mãos a abanar e olhos no céu, porque o espectáculo nocturno das estrelas parece ter outra verdade quando é visto do alto bem alto de um penedo, sem luz nenhuma saída da terra. Deitadas no granito, de barriga para o ar, elas olhavam a Ursa Maior e a Cassiopeia, Oríon e a Via Láctea, tudo tão nítido no negro retinto do céu como o desenho dos ossos nas radiografias. Falavam das estrelas e dos planetas, da imensidão do cosmos e da fragilidade do mundo, da pequenez dos Homens e da pequenez dos homens, tudo coisas sumamente importantes para quem um dia desejaria (talvez) encontrar-se com a impossível estrada dos planetas, das galáxias próximas e longínquas e dos sóis que ninguém vê. Buscavam a ciência e a insónia, a filosofia barata e a pretensão do conhecimento, na tácita certeza, porém, de que, a haver um dia um caminho certo para o infinito, nenhuma das duas lá poria o pé. O mundo por aqui é ainda belo, lá ninguém sabe.

Thursday, September 28, 2006

Continenteonline

Tenho que confessar a minha autêntica sedução pelo Continenteonline. É que podemos perfeitamente estar em casa de chinelos, ou mesmo ainda na concha morna dos lençóis, e garantir, com só mais um clique, a súbita aparição das compras no chão da nossa cozinha, em fila indiana como os meninos nos colégios e ainda por cima impecavelmente embaladas e acondicionadas. É claro que as vantagens são inúmeras: a poupança de tempo e de esforço (e só não sabe o esforço que uma tarde de supermercado representa quem lá não vai), a fuga às famílias inteiras penduradas num só carrinho, com as crianças a correr pelos corredores fora e a pedinchar sempre alguma coisa, de mão insistente na aba do casaco dos pais e, porque não dizê-lo, também a poupança de dinheiro. Porque a verdade é que um clique em cima de um detergente que nos faz falta impede imediatamente o nosso olhar guloso e deslizante (fatal como o destino com a prateleira ao pé) para um amaciador que desconhecíamos (porque agora acrescido de aloe vera ou de outro milagre semelhante) e que de repente se nos tornou importantíssimo. Tudo isto, é claro, são vantagens inegáveis, sem as quais habitualmente já não passo, mas a verdade é que, ganhando tempo e paz de espírito, acabei por perder um hobby que muito me divertia e que me ensinou alguma coisa sobre as pessoas. Nunca experimentaram chegar à fila de pagamento e comparar o vosso carrinho com o dos parceiros do lado? Então experimentem e verão como é instrutivo. Porque há de tudo: senhoras sem paciência para nada e que compram ao mesmo tempo refeições congeladas e pacotes de rebuçados para entreter as crianças enquanto se aquece o jantar, jovens de calças rasgadas e crista de gel com uma ou duas coisas, aparentemente inúteis, na mão, velhinhas com embalagens de meias em promoção para despachar pelos netos no Natal, donas de casa que tiraram o dia para a coisa e abarrotam vários carrinhos, porque depois só no mês seguinte, miúdas à caça de dossiers da Floribella e dos Morangos com Açúcar, senhores de meia idade com folhetos na mão atrás de bons vinhos, etc, etc.,etc. Muito disto nos mostra como as pessoas vivem, qual o seu ritmo de vida, que tipo de empregos lhes permite andarem ali às compras, por aí. Por mais que seja cómodo vermos agora chegar a casa uma alface que nunca vimos em cima de uma carrinha, era realmente mais interessante quando éramos nós a escolhê-la pela comprovada frescura ou pelo aspecto inteiro das folhas, piscando simultaneamente o olho à alface do vizinho. Ultimamente, acabei por deslocar este prazer do Continente para a Makro, onde as compras são sempre makrocompras para a grande maioria que lá vai. É verdade, mesmo aí podemos saber se o minimercado do senhor que nos tentou roubar a vez na caixa é um estabelecimento do centro da cidade ou  uma prquena mercearia em Casais do Campo, porque convenhamos que não é a mesma coisa encher o carro de sabonetes Cegonha ou comprar dúzias de caixas de Dove, assim como também não é o mesmo investir em caixas de Porta da Ravessa ou levar consigo várias caixas de Cartuxa. Aqui não é bem diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és, mas diz-me o que compras e dir-te-ei quem és (ou para onde vais, o que é o mesmo). Boas compras!

Tuesday, September 26, 2006

Talvez de nós para os filmes que amamos

Normalmente, em relação aos filmes que muito amo, é apenas através de uma imagem em particular que os conservo para mim (porque só na intimidade de nós eles fazem o sentido final), por mais que eu racionalmente possa explicar o porquê do meu fascínio pelo filme como um todo. Lembro de repente uns quantos: Match Point, Habla con Ella, In the mood for love e Hannah and her sisters. E, de facto, é como se ao lembrá-los houvesse uma imagem a querer sobrepor-se a todas as outras possíveis - em Match Point é a imagem da aliança, suspensa por um segundo entre o rio e o jardim; no Habla con Ella é a soberba lide taurina da Elis Regina, quase em câmara lenta entre a vida e a morte de Lydia; no In the mood... é, como não, aquela magnífica dança das escadas entre o assombro dos vestidos dela e os (quase) silenciosos passos dele. Todavia, no Hannah and her sisters ocorrem-me duas imagens, que são afinal uma só: por um lado, é a imagem da Lee embrenhada na leitura do poema do e. e. cummings recomendada pelo cunhado, sentada e quieta na brancura da colcha como uma pequena ilha humana; por outro, é ainda a imagem, simultaneamente densa e subtil, que vai saindo de dentro do poema directamente para nós. Porque essa é uma imagem também, e fortíssima, que cito mais ou menos de memória:
Your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully, misteriously) her first rose
i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses
nobody, not even the rain has such small hands
Talvez as imagens que se fazem, para nós, maiores que as outras sejam aquelas que lentamente resvalam de nós para o filme e não do filme para a nossa surpresa ao vê-las. A pensar melhor.

Já tinha ouvido falar de certos olhos que são como um aquário onde vivem peixes verdes, mas não sabia que o verde podia ser também a cor do fogo. Saber até sabia, mas as cores também tombam, como os frutos não colhidos, ainda para mais se é o fogo a tombá-las. Mas o que eu desconhecia mesmo era o modo como o verde pode arder sob a pele, primaverando de um pulo veias e sinais. Que farei, quando tudo arde? Se calhar começar por dar corda ao relógio, parado desde as sete, esgotado e imóvel no coração do tempo, como um peregrino recém-chegado ao seu destino.

O primeiro caminho, sem dúvida

No fim ele perguntou-lhe: - Como te sentes? E ela respondeu assim:

EU TINHA GRANDES NAUS

Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isto fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.

Lamentam-se de mais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.

(Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp.22-23)

Monday, September 25, 2006

os-tres-caminhos: os-tres-caminhos

O que o Fernando Guimarães não disse, ou disse sem dizer, é que o caminho um é realmente o primeiro, que o outro em relação ao um é normalmente o segundo e que o terceiro não pode deixar de ser o último de todos. E por várias razões, inexpugnáveis como um dia de sol, como disse o outro: porque, regra geral, começamos todos por querer caminhar muito, agigantando o passo, e ignorando que o nosso destino é de facto o círculo; porque a vida, queiramos ou não, converte sempre o nosso caminho em destino, mesmo depois de termos aprendido que o beco sem saída é equivalente ao percurso do círculo, embora se chegue lá mais depressa (não porque caminhemos de outro modo , mas porque sabemos mais acerca da inutilidade do caminhar). O último de todos é afinal apenas um ponto, é a nossa definitiva pertença a um espaço sem trajecto visível por diante. Se calhar porque sabemos infinitamente mais.Ou menos.

Sunday, September 24, 2006

os-tres-caminhos

os-tres-caminhos