Thursday, November 16, 2006

A ferro e fogo (lento)

Do realizador coreano Kim Ki-Duk, o filme 3-iron retoma algo de fundamental do anterior Spring, Summer, Fall, Winter... Spring: o entendimento do tempo como um devir absolutamente inexpugnável e a sua vivência como íntima construção do homem. Mas 3-iron não é propriamente um filme sobre o tempo e os seus efeitos, como o era Spring..., mas um filme sobre a solidão dos homens e o papel do silêncio na denúncia e/ou sublimação dessa mesma solidão. Tae-suk vagueia pelas ruas na sua mota em busca de casas temporariamente desabitadas onde possa viver sozinho a ficção de uma família, fazendo-se retratar ao lado das fotografias que vai encontrando de casa em casa e refazendo as tarefas domésticas de quem não está para que ele possa estar - lavar a roupa suja e consertar electrodomésticos avariados. Não, não me parece que o faça numa tentativa de retribuir a involuntária hospedagem dos proprietários, mas de modo a tentar estabelecer com o espaço simbólico do lar uma ambígua forma de pertença. Até que Tae-suk encontra Sun-hwa numa dessas casas, uma bela mulher maltratada pelo marido e que parte com ele em busca da mesma ficção que impulsionava as solitárias derivas de Tae-suk. A experiência conjunta da rotina doméstica, vivida nas casas por onde vão passando, acaba por sedimentar em ambos o lento trabalhar da maior e da mais silenciosa de todas as ficções - o amor, um amor integral que a mútua solidão acabou por converter em destino para a vida. Mas dito isto é como se não tivesse dito nada, porque isto não é na verdade o filme, mas apenas o motivo dele. O verdadeiro filme está na elegantíssima exploração do implícito e do não-dito como factor primordial de intensificação da intimidade entre Tae-suk e Sun-hwa; está na terrível beleza da música de Natacha Atlas, que acompanha a progressiva aproximação dos futuros amantes como se fosse uma espécie de íntima rima das almas, em trânsito convergente para o mesmo inevitável centro; está no sábio movimento das bolas de golfe à roda do ferro nº3 - desde a lentidão com que a bola é inicialmente trocada entre Tae e Sun (e este é talvez o seu único "diálogo" ao longo do filme) à violência que depois lhe imprimem tanto o próprio Tae como o enciumado marido de Sun. E está sobretudo, mas sobretudo, nos belíssimos momentos finais em que não existe nem o fantástico nem o fantasmático, porque existe apenas a encenação de uma muito rara capacidade - a de vivermos o amor apenas dentro de nós quando o outro nos falta e tudo é para nós como se não faltasse. Porque o amor resume-se afinal a um imóvel ponteiro de balança pousado no zero, com um imaginário prato em cima a tentar suportar o peso imaterial do coração.

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