Tuesday, September 26, 2006

O primeiro caminho, sem dúvida

No fim ele perguntou-lhe: - Como te sentes? E ela respondeu assim:

EU TINHA GRANDES NAUS

Os amantes esquecem. A Primavera volta.
A terra treme. E piam as aves em bando
vindas de Helgoland por detrás da serra.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? perderam a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

O teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
Tudo isto fará a delícia
e o espanto dos nossos filhos.

Lamentam-se de mais, acenam
com as suas dores particulares
a quem passa, que passa
por outras razões. Querem dedos suaves
na testa, um calor de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, amantes em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta
e eles consertam-se: coisas
da sua mecânica misteriosa.
Mesmo a terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Caíram árvores, camponeses gritavam
enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.

(Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp.22-23)

2 Comments:

At October 02, 2006 5:44 PM, Anonymous Anonymous said...

Qualquer metáfora serve para identificar a busca incessante do caminho que queremos fazer nosso. Mas convenhamos que o poema do Assis Pacheco é rico de sentidos plurais,o que permite leituras muito diferenciadas, de acordo com o tipo de leitor e a sua predisposição nesse momento...Por mim,dou de barato a canela, que me convoca de imediato uns sábios versos de Sá de Miranda; fico-me com o sândalo,de perfume doce!

 
At October 20, 2006 7:38 PM, Anonymous Anonymous said...

O horizonte é a terra das especiarias que tornam a vida menos rotineira, mais saborosa, com exotismo q.b.
Mas também das madeiras perfumadas com que podemos fazer balsas que nos levem, suavemente, rio abaixo...

 

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