Saturday, January 20, 2007

A primeira manhã

A mulher virou-se devagar para o homem e disse-lhe baixinho empresta-me os teus olhos. Ensina-me como se move na água o perfil dos barcos, como anoitece no ocre das casas o pequeno ramo da luz, qual o cheiro dos limos no eco mais fundo da noite. Dá-me a cidade de ti. E o homem respondeu-lhe dou-te os meus olhos se neles estiverem também os teus, porque são eles agora que me ajudarão a ver. A mulher sorriu e reclinou ao de leve a cabeça no ombro do homem, apertando bem o casaco contra a insidiosa lâmina do ar. É noite, está frio, disse o homem, vamos embora. A mulher nada disse, até que a porta do quarto se fechou finalmente sobre os dois, num silêncio de casulo que rarefazia o ar. Deixa-me atravessar a porta do teu corpo para o lado de lá, pediu ela. Sabias que um corpo é uma porta, não sabias? Uma porta sobre outra porta ainda? Sim, respondeu ele, abre então esta minha porta, feita de ossos, pele e músculos, que há tanto tempo eu te esperava no mapa das cidades invisíveis. Eu sou um pouco as portas que tenho, disse por sua vez a mulher. Nenhum dos dois disse mais nada e muito tempo depois, ao primeiro acorde, ainda tímido, da luz, a mulher espreitou atenta o sono do homem, levantou-se e foi abrir a janela sobre o canal, ainda escuro sob o trémulo desenho das casas. Ficou por momentos imóvel, de olhos fixos no percurso ascendente da luz, e depois repetiu para si, ecoando em silêncio as palavras do mestre: «esta é a primeira manhã do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que o casario de oeste encara cheio de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.»

1 Comments:

At August 12, 2008 5:07 PM, Blogger Unknown said...

Muito bonito.

Espero que continue a escrever no blog.

J

 

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