Sunday, December 10, 2006

O veado

A Rainha, de Stephen Frears. Como sempre, na primeira fila até se apagarem as luzes e depois umas filas mais atrás, de modo a não ter ninguém entre mim e o ecrã. A citação inicial de Shakespeare («uneasy lies the head that wears a crown», do Henrique IV) já tinha dado um pouco o tom - o do dilema entre o público e o privado, o dever e o sentimento, a responsabilidade e a defesa do humano -, embora só muito mais tarde a densidade psicológica da rainha acabe por se revelar ao espectador. Não, este não é um filme sobre a tumultuosa semana anterior ao funeral de Diana, nem sobre a forma como a família real inglesa reagiu ao inesperado do acontecimento: é um filme sobre o peso espartilhante da coroa na vida de uma mulher, tomando como motivo directo as consequências geradas pelo fatídico acidente de Paris. E esse peso não é coisa que possa mostrar-se para espectador ver, porque é tudo menos simples, como afirmava Geraldine Chaplin no fim de um filme muito meu - «Eu sou professora de ballet e posso garantir-lhe que nada é simples». De facto, é preciso ler um pouco para lá do concreto da imagem, espreitando insidiosamente o reverso das duas extraordinárias cenas do veado (primeiro a da sua liberdade, depois a da sua captura), onde está em síntese todo o percurso biográfico de abdicação da rainha, irrepreensivelmente interpretada por Helen Mirren. Nunca saberemos se foi assim que tudo realmente sucedeu, mas isso não importa, porque se não foi assim poderia perfeitamente ter sido, até porque este exercício de indagação ficcional da verdade é quase tão importante para a eventual fixação da mesma como a narrativa exacta dos factos. Como quase sempre me acontece, do filme de Frears ficou-me sobretudo uma imagem - a do veado passeando tranquilo pelos campos da Escócia e a da comoção da rainha ao olhar para ele. Um filme em grande.

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