Sunday, October 08, 2006

O silêncio da fotografia - 2


Se estivéssemos agora no meio da Praça de São Marcos, em Veneza, olhando atentamente na direcção das duas colunas que, ao fundo, delimitam a fronteira entre a terra que acaba e a água do Canal que principia, jamais veríamos o que esta fotografia nos dá a ver - a largueza da praça maior da cidade e a ténue suspeita da água, que se adivinha um pouco mais para lá, depois das tais colunas erguidas a prumo. Antes de mais, porque acabaríamos, provavelmente, por ver a mesma praça um pouco mais à frente, em relação à posição em que estava o fotógrafo, ou mais ao lado, ou mais atrás, ou ainda lançando sobre as pedras e os palácios um olhar um pouco mais distante, semicerrando os olhos por causa do sol. Depois, porque esta fotografia é ela própria, em simultâneo, uma imagem da praça veneziana de São Marcos e a sua opacificação na posterior verdade da lente, uma vez que ela opera obrigatoriamente uma redução subjectiva de todo o campo visual disponível a quatro breves linhas que impedem a hemorragia desse mesmo real, agora aprisionado pela câmara (ia a dizer emoldurado), para todos os lados onde também está o que a fotografia já não mostra. Assim: onde está o Palácio dos Doges, de que só se vê o extremo, perto da linha da água? E onde a Catedral de São Marcos, um pouco mais ao lado, no recolhimento lateral da praça? É que a fotografia possibilita sempre a quem a vê o desenvolvimento de um olhar oblíquo sobre o mundo à nossa frente, capaz, portanto, de identificar o lugar exacto dessa fractura entre o real que vemos e o mundo fotografado. É caso para dizermos: nunca veríamos esta imagem de São Marcos mesmo que a víssemos ao natural. E se estivéssemos de facto lá, com esta (ou com outra) fotografia na mão, saberíamos talvez melhor onde inscrever essa fenda, esse pequeno espaço de silêncio entre o real à nossa frente e a fotografia na nossa mão. E então o movimento pendular da nossa cabeça, oscilando entre o real palpável da praça e a sua representação fotográfica, acabaria por corresponder a um movimento igualmente pendular entre a realidade dos palácios, por um lado, e a sua perturbadora negação, por outro. Decerto nunca houve, na realidade visível de Veneza, nem aquela hora, nem aquela luz, nem aqueles pombos poisados no chão, nem sequer a sombra daquele homem que atravessava a praça a passo largo e com uma pasta de negócios na mão. O instantâneo do disparo deixou-lhe eternamente o pé no ar, numa imobilidade de estátua, e isso é justamente o mais bonito da fotografia. E o mais comovente também.

1 Comments:

At October 20, 2006 1:29 AM, Anonymous Anonymous said...

Há imagens que fazem rir, outras que fazem chorar. Há imagens que riem e imagens que choram... As imagens despertam sentimentos, sobretudo quando são pretexto. E a que precede este texto da Isabel Cristina é bela, porque o belíssimo texto a torna assim...

 

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