Friday, October 06, 2006

Como morre o amor a sua morte


A mulher pegou na carteira e saiu. Sobre o tampo escuro da mesa ficara apenas o desenho invisível da ruína, uma ruína de pedras e de impérios, de saberes secretos e de sonhos inconclusos, de palavras por dizer e de outras já tão ditas. Olhou de relance para trás e na tímida contraluz da manhã estavam ainda marcas confusas de dedos na superfície lisa da madeira. Como morre o amor às mãos dos homens. Como morre o amor a sua morte. Enquanto carregava no botão do elevador, lembrou-se de repente do verso da Isabel Cristina Pires e repetiu-o vezes sem conta ao longo do percurso descendente dos números. Como morre o amor a sua morte, como morre o amor a sua morte. Lá fora havia sol e uma espécie de frio de oiro despertou-a daquela recitação absurda que por instantes pareceu travar-lhe a alma. Já dentro do carro espantou-se de o mundo estar, aparentemente, tão inteiro. Os carros desciam a avenida com a pressa do costume, roubada talvez aos aviões, o senhor da frutaria compunha legumes frescos numa habilidosa sinfonia de verde e duas crianças saíam do café com enormes chupa-chupas na boca. A mulher ainda esperou pelo ramalhete rubro das papoilas, mas ele não apareceu - devia ter descido à terra com a lenta derrocada do império, pensou. Ela bem queria dizer ao mundo que o mundo estava morto e que era por isso necessário começar a morrê-lo a cada dia, começar a morrê-lo até que dele nada mais restasse, como sucede com as ocas carcaças de animais nos vastos e profundos desertos da terra. Mas a mulher nada disse e nem assim se ouviu o que ela tinha para dizer. Mais ao fundo da rua, perto da rotunda, viu distintamente uma moça nova a cantarolar dentro do carro, de óculos de sol e sorriso aberto nos lábios, que depois arrancou alegremente ao verde redondo do sinal, indiferente, como todos os outros, à anunciada morte do mundo. A mulher pensou como era triste o mundo ter morrido sem que ninguém o soubesse a não ser ela, mas não insistiu mais. Voltou para casa e ficou muito tempo deitada na cama, a ouvir com atenção o rolar distante dos carros lá em baixo. Não voltou mais à janela porque sabia que nada mais havia para ver. E tinha razão. O mundo jaz morto e arrefece.

1 Comments:

At October 20, 2006 6:59 PM, Anonymous Anonymous said...

Tal como as tece, o império também desmancha as malhas... Assim como o amor, que parece jazer morto e frio, se transforma, súbita e inesperadamente, em fénix...
E assim revive o amor a sua vida, não raro de forma espantosamente mais intensa!
Preciso é ter aberta a janela, para que essa fénix possa por ela entrar...

 

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