Os HUC ou a hermenêutica do sofá

- E que letra é a sua?
- Tenho um S.
- Então não precisa. Significa o máximo, que pode pagar o máximo.
Olhei discretamente para o meu - outro S. Suspirei baixinho. Oito menos dez e chega um grupo de gente que se põe logo em sentido frente ao guichet. O senhor da letra T levanta-se e explica ao primeiro usurpador que a fila tinha já umas quantas pessoas antes deles - nós.
- Isso não me interessa. A fila é aqui no guichet, não no sofá.
- E o senhor acha justo estarmos aqui nós há mais de uma hora e vir agora o senhor com toda esta gente meter-se à frente?
- Não quero saber. Na semana pasada também eu estava sentado naquele sofá além e quando o guichet abriu meteu-se uma série de gente à minha frente. Eu também não gostei e foi a senhora que depois me atendeu que explicou que a fila é aqui e não no sofá.
- Então se não gostou do que lhe fizeram por que é que está a fazer o mesmo aos outros?
- Então, todos temos que nos desenrascar. É a vida.
Um casal com uma criança pequena ao colo rosnou ainda, esperançado - eu ria-me era se depois disto tudo as crianças têm prioridade...
Os guichets eram muitos e tudo andou finalmente depressa. Quando cheguei ao secretariado do serviço onde tinha a consulta vi logo a serpente de cartões verdes marcando prioridades e ordens de chegada. Fui muito bem atendida, com profissionalismo e atenção, como sempre fui nos HUC, que de facto tem serviços de excepção. Mas enquanto esperava pela minha vez ia olhando sempre, a tentar compreender: senhoras vindas de longe e que, de quando em quando, iam agradecendo humildemente uma coisa que não sabiam talvez ser do seu direito; homens de camisa ao xadrez e calças fininhas de poliester, de barriga à taxista e cinto descido, à espera de uma oportunidade para perturbar o sistema como o homem do sofá; velhinhos a acompanhar as esposas (não mulheres, mas esposas); mulheres novas, de barriga flácida à mostra e chiclete persistente na boca, queixando-se do inferno dos transportes e das horas de sono que tiveram que roubar aos filhos. Eu não conduzo táxis nem uso cintos descidos, não tenho uma esposa para acompanhar e muito menos filhos ensonados para deixar na escola. Nem sequer te procurei a ti enquanto lá estive, mas foi bom chegar depois cá fora, ao sol envergonhado da manhã e ao vento que soprava do norte, e caminhar devagar por entre as ambulâncias em fila e os táxis de Arganil e Sever do Vouga.
1 Comments:
Um esclarecimento: a letra S, pelo menos a que colocaram no seu cartão, significava Sensibilidade, Simpatia, Sinceridade...
Por isso não devia pagara nada!
Espero que, ao menos, lhe tivessem curado a alergia!
Post a Comment
<< Home