Os HUC ou a hermenêutica do sofá
Voltei há dias atrás aos Hospitais da Universidade de Coimbra, felizmente não para internamento (o que nos afivela logo o olhar à cama ou ao serviço que nos recebe), mas apenas para uma consulta externa de imunoalergologia. A coisa tem a sua complexidade, a começar pela hora absurda a que a maioria das pessoas é levada a levantar-se para conseguir atendimento assim que abrem os guichets e começam a chegar os médicos. Primeiro são os guichets da burocracia, que abrem às oito horas e onde cheguei aí pelas sete. Na penumbra da sala encontrei já umas quatro pessoas, sentadas nos sofás perto dos guichets e a quem perguntei se estavam na fila. Estavam. Fixei mentalmente o meu lugar e sentei-me, com a conversa rolando solta ao meu lado esquerdo. Dois senhores de idade comparavam alegremente os seus cartões, falavam de possíveis isenções de taxas e da necessidade de trazerem da próxima vez a respectiva declaração de IRS. O mais velho explicava, apontando o dedo para o seu cartão do SNS, que por ter nele impressa a letra T era anualmente obrigado a isso.
- E que letra é a sua?
- Tenho um S.
- Então não precisa. Significa o máximo, que pode pagar o máximo.
Olhei discretamente para o meu - outro S. Suspirei baixinho. Oito menos dez e chega um grupo de gente que se põe logo em sentido frente ao guichet. O senhor da letra T levanta-se e explica ao primeiro usurpador que a fila tinha já umas quantas pessoas antes deles - nós.
- Isso não me interessa. A fila é aqui no guichet, não no sofá.
- E o senhor acha justo estarmos aqui nós há mais de uma hora e vir agora o senhor com toda esta gente meter-se à frente?
- Não quero saber. Na semana pasada também eu estava sentado naquele sofá além e quando o guichet abriu meteu-se uma série de gente à minha frente. Eu também não gostei e foi a senhora que depois me atendeu que explicou que a fila é aqui e não no sofá.
- Então se não gostou do que lhe fizeram por que é que está a fazer o mesmo aos outros?
- Então, todos temos que nos desenrascar. É a vida.
Um casal com uma criança pequena ao colo rosnou ainda, esperançado - eu ria-me era se depois disto tudo as crianças têm prioridade...
Os guichets eram muitos e tudo andou finalmente depressa. Quando cheguei ao secretariado do serviço onde tinha a consulta vi logo a serpente de cartões verdes marcando prioridades e ordens de chegada. Fui muito bem atendida, com profissionalismo e atenção, como sempre fui nos HUC, que de facto tem serviços de excepção. Mas enquanto esperava pela minha vez ia olhando sempre, a tentar compreender: senhoras vindas de longe e que, de quando em quando, iam agradecendo humildemente uma coisa que não sabiam talvez ser do seu direito; homens de camisa ao xadrez e calças fininhas de poliester, de barriga à taxista e cinto descido, à espera de uma oportunidade para perturbar o sistema como o homem do sofá; velhinhos a acompanhar as esposas (não mulheres, mas esposas); mulheres novas, de barriga flácida à mostra e chiclete persistente na boca, queixando-se do inferno dos transportes e das horas de sono que tiveram que roubar aos filhos. Eu não conduzo táxis nem uso cintos descidos, não tenho uma esposa para acompanhar e muito menos filhos ensonados para deixar na escola. Nem sequer te procurei a ti enquanto lá estive, mas foi bom chegar depois cá fora, ao sol envergonhado da manhã e ao vento que soprava do norte, e caminhar devagar por entre as ambulâncias em fila e os táxis de Arganil e Sever do Vouga.
1 Comments:
Um esclarecimento: a letra S, pelo menos a que colocaram no seu cartão, significava Sensibilidade, Simpatia, Sinceridade...
Por isso não devia pagara nada!
Espero que, ao menos, lhe tivessem curado a alergia!
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