Thursday, October 05, 2006

As manhãs do mundo

Stephen King, Forrest dawn
Foi há muitos anos que a mulher ouviu falar nas duras manhãs do mundo. Nem foi talvez há muito, o que são cinco ou seis anos na vida de uma pessoa? Ora, seis anos é muito tempo, se o contarmos não por dias ou estações, mas pelo que em nós passa ao longo desse passar. E ela repetia a cada manhã aquele inimitável verso do Manuel Gusmão - «é de novo uma manhã do mundo» - dizia. Já então ela sabia que este era o primeiro verso de um poema que depois caminhava sozinho, alongando-se na página como se tudo fosse fácil - como se fosse fácil aceitar o advento da manhã depois do antes contido na noite e como se o escrevê-lo fosse tão natural também como a dádiva primeira da luz, impondo-se ao dia do mundo depois do recolhimento da treva:
É de novo uma manhã do mundo. Dormia leve no sono
e sente que te levantaste. Procura-te e estás ali na varanda
da frente. Está frio e dizes que tens calor.
Fumamos contra o negro que reflui muito lento.
O estarmos ali os dois é o vago som de um tio entre nós.
Até que quase de súbito se expande um branco baço -
é a névoa do dia que começa. Apagam-se as luzes de presença
depois os candeeiros na rua. O céu, a montanha, o rio
e a ruína que a todos interrompe são apenas tons
de um branco que fosse uma imensa paz ou
uma morte quase
quase já reconhecida.
Pássaros e gatos povoam o pequeno mundo de aloendros,
palmeiras e silvas, cujas cores escrevem a névoa branca
que as apaga esquece e escuta.
Aquele procura alguma coisa perto da sebe que guarda a ruína.
Entre a febre e o frio somos também nós que nascemos?
ou estamos já morrendo?
(Manuel Gusmão, Teatros do Tempo, Lisboa, Caminho, 2001, p. 87.)
A mulher sempre soube que estas palavras guardavam muito da sabedoria medieval do amor e percebia bem por que, no caso do poema, era a manhã tão inimiga desse homem ánónimo que dormia e da mulher que se levantava para ir olhar o mundo da varanda do quarto, mas não encontrava nisso nada de semelhante com as suas manhãs, nem com todas as noites vividas antes delas. Tiveram que passar-se muitos anos até ela perceber que as manhãs do mundo são afinal muitas e a muitas horas distintas: elas podem ser o fim e podem também ser o início, podem ser a morte ou a confiança ainda numa noite por haver, podem trazer a necessidade de partir, mas trazem também a esperança no depois

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