Tuesday, October 03, 2006

O silêncio da fotografia - 1

Geneticamente impossibilitado de exprimir-se pelo som, o silêncio procura por vezes, no campo visual, a divulgação do seu próprio corpo - e se não pode ouvir-se, a verdade é que o silêncio pode, por exemplo, ver-se materializado na imobilidade dos seres e das coisas. Mas a imagem fotográfica desta mulher, surpreendida pela câmara no instante do movimento que o clique do fotógrafo tratou de paralisar é, não só, uma imagem silenciosa, como também uma imagem mentirosa - sabemos bem que não retratar tudo o que o fotógrafo pôde ver antes de premir o botão significa, a seu modo, silenciar o que também lá estava e ele de repente não quis que estivesse. Porque, na verdade, a mulher não estava de cabelo solto, mas com um gancho preso no alto da cabeça, onde ela poisava singelamente a mão e que lhe deixava a nuca a descoberto. Caía-lhe pelas costas uma madeixa descuidada de cabelo, esquecida ou abandonada no movimento ascendente dos dedos, e esse era talvez o único ruído da fotografia. Havia ainda silêncio no todo do quarto, antes e depois do amor, e a mulher lembrou ao homem como tudo estava quieto e como a única presença do mundo ali dentro era a da gota de água que ritmicamente tombava do beiral e que a mulher podia ver, sempre que virava a cabeça, entre a borda da cortina e o canto da janela. Ainda lá deve estar, ao lado da cama, uma chávena vazia de café que também não coube na fotografia e o rasto de um búzio que a mulher trouxe para si. O homem levou apenas uma fotografia da mulher, talvez para repor um dia a verdade enganosa do fotógrafo, ou simplesmente para prolongar um pouco mais o milagre de terem sido juntos.

1 Comments:

At October 20, 2006 7:14 PM, Anonymous Anonymous said...

Feliz (ou infeliz?!) quem ainda consegue acreditar nos milagres que passaram. Melhor é crer nos que hão-de vir!

 

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