Wednesday, October 11, 2006

Mon coeur s'ouvre à ta voix

A mulher deitou-se no sofá, empurrando para baixo o calcanhar direito com a ponta do pé esquerdo para se descalçar, e suspirou devagar. Oito menos dez. Ficou um pouco olhando o tecto, de olhos perdidos no mar branco da cal, e depois virou a cabeça para o lado direito, para a moldura de madeira onde havia anos colocara, cortada de uma revista de modas, a fotografia da Callas. Era uma fotografia especial para a mulher, porque não era uma fotografia do esplendor artístico da diva, como as que impõem as editoras às capas milionárias dos discos, mas uma fotografia dela já sem o canto à porta última dos lábios, porque para sempre sepultado no mais lá dentro dela própria. Esta mulher só se cantou sempre a si e nunca ninguém reparou, pensou a mulher deitada no sofá, pegando de repente no salto do pé direito e fazendo rodopiar o sapato no ar. E afinal tudo isso está aqui nesta fotografia sem data, concluiu. Bem, já devia ter sido abandonada pelo Onassis, isso com certeza, ou não teria aquela luz baça e fria no raio já descrente do olhar. Porque só olha assim para o chão quem já aprendeu que o sofrimento e a alegria moram no mesmo sítio sem nome a que os homens chamam alma. Alegria e dor são a mesma coisa nessa intensidade de água e nervos que nos mora dentro, disse a mulher baixinho, só que na Callas isso via-se-lhe logo na voz. Por isso é que ela cantava assim - com a glória toda na alma e um véu de amargura na voz. A isso também podemos chamar melancolia, mas a melancolia da Callas era muito mais do que apenas melancolia. Era a íntima aceitação do seu destino e a irremediável denúncia disso na suprema navalha que é o canto. A mulher levantou-se, pôs finalmente a Callas a tocar e, logo ao primeiro verso, lembrou-se que no dia do seu primeiro encontro com o homem era a Callas que também tocava, no carro. Mon coeur s'ouvre à ta voix, com o volume no máximo. Voltou a deitar-se até que o desenho dos montes, recortado no céu para lá da janela da sala, se apagou de vez no negro vagaroso do céu.

1 Comments:

At October 19, 2006 2:04 AM, Anonymous Anonymous said...

Aussi "Mon coeur s'ouvre à ta voix", com o volume no máximo!...

 

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