As palavras sepultadas
«A Maria dos Remédios disse-me hoje, e eu senti-me verdadeiramente a máscara dela:
- Espantoso que seja muito mais cómodo ser infeliz do que feliz. Porque se eu e o Humberto quiséssemos... Uma simples questão de esforço, de esforço persistente, de combate sem tréguas!
Sempre que eu e o Humberto nos dispomos a tal esforço, a ir à busca de certas palavras sepultadas, perras, difíceis de trazer à vida por falta de uso...! Sim, quando vamos desencantar ao passado, ao presente, até ao futuro, dentro ou fora de nós, palavras que nos permitem participar um do outro, então somos felizes. E aí tens o jogo bem mais fácil: procuro em ti uma parte da felicidade que não encontro com ele, sabes porquê? Porque estar nos teus braços é, de certo modo, mergulhar no tal mundo imaginário e difícil que dá a felicidade, mas de uma maneira mais simples: não precisamos de achar palavras novas, gestos novos; as palavras que entre mim e ele se tornaram gastas, ainda são novas, ainda são cristalinas se eu e tu as dissermos um ao outro. Sem esforço, atinjo contigo o tal mundo dramático, o tal mundo diferente do mundo esvaziado pelo hábito... E por isso aqui venho.»
Augusto Abelaira, Bolor, Lisboa, Bertrand, 1976 (1968), p. 136.
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