Saturday, October 21, 2006

O rendetemi la speme

Chegada a casa, a mulher ainda hesitou - a Callas ou a Mirella Freni? Talvez a Freni, uma voz mais aberta que a da Callas, mais cheia de esperança, pensou. O rendetemi la speme. Vinha cansada, com o corpo moído do excessivo peso do coração e do fulgor inesperado dos malmequeres. A mulher tinha-os levado há muito tempo para a casa do vale, embrulhados em algodão e água por receio da vertical melancolia das folhas, e plantara-os um a um, cientificamente emoldurados por pequenas pedras roubadas ao mar, na borda do muro do alpendre, sob o ninho redondo das ameixas. Amanhã estão mortos, pensou. E a cada rega a esperança do talvez não. La speme, la speme, cantava a Freni. Mas depois, durante todo o verão, a mulher esqueceu-se deles, e quando finalmente se lembrou achou natural eles terem morrido no exacto momento em que ela própria sucumbia à sentença involuntária da ruína. Naquele momento, ouvindo a Freni implorar pela enésima vez uma última dádiva de esperança, a mulher pensou sobretudo na sua matinal afronta de oiro e pétalas. Como conseguiram eles, se eu não?, pensava a mulher. Ela chegara cedo à casa do vale e sentiu logo a voz das oliveiras soletrando em silêncio o seu nome. Elvira, Elvira. Não respondeu logo, mas deu devagar uma volta pelo lado de fora da casa, confirmando com um sorriso a teimosia invernal das buganvílias e a verde suculência dos abetos. Qui la voce sua soave mi chiamava e poi sparí, disse ela de repente, primeiro só para si e depois também para a breve memória do homem em fuga. Ah, mai più assorti insieme nella gioia dei sospir. L'ingrato obllia, sussurrou surdamente a terra. Mas a mulher não ouviu, perdida mais uma vez na vertigem do mai più. Nunca mais o cheiro nocturno da relva entrando a galope pelas janelas, nunca mais os alegres jantares no terraço, longos como estradas na penumbra ociosa do poente, nunca mais o restaurante de Roma e a alegria do sino no caracol da escada, nunca mais nada, nada nunca mais, nunca nada mais. Un cor fido nell'amor sempre vive nel dolor, lembraram, ingratos, os malmequeres, de cínica crista erguida a prumo no denso cacimbo da manhã. E então a mulher compreendeu. Não me chamo Elvira, disse, e não quero dádiva nenhuma de esperança, quero apenas o dom de a não deixar fugir de mim. Os malmequeres, agastados com a repentina descoberta da mulher, viraram o seu corpo cheio de dedos de costas silenciosas para ela. Com o comando da música na mão, a mulher mexeu-se ao de leve na preguiça mole do sofá e ficou a olhar, por instantes, para o balanço das árvores lá fora, ao vento forte do fim da tarde, até que finalmente adormeceu, assim que a Freni se calou.

1 Comments:

At October 21, 2006 12:02 AM, Anonymous Anonymous said...

E de novo o mar, hoje mais calmo, com ondas suaves a embalar flores, numa maré a encher de esperança... Bom sono e bons sonhos Isabel Cristina!

 

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