A ladrona de Lamego
Há semanas atrás resolvi ir à feira semanal do Bairro Norton de Matos, onde, confesso, nunca antes tinha posto o pé e logo eu que gosto tanto de feiras de rua... Mea culpa, portanto. A manhã queimava de sol e gente na brancura dos toldos, onde boiavam ainda aromas e fumos de cozinha, como no poema do Cesário. De porcelanas reluzentes nem a sombra, mas o retalho da horta lá estava, ombro a ombro com centenas de jeans de marca roubados e outras tantas t-shirts, a preços tão incríveis como as tintas que nelas imitavam a cor da moda: vermelhos Gant e verdes Tommy Hilfiger, prometendo descorar à primeira suspeita de água. Uma cigana jovem, de larga trança preta pela cinta, subia convicta a um banco as suas grossas meias, calçadas por fora do fato de treino escondido pelo avental de ramagens, e apregoava alegremente os produtos de boutique que dizia vender. -Isto é produto de botica! 5 euros! Olhei divertida para a fúria respigadora das clientes e logo a seguir para o perigoso desenho das saias, de costuras esgaçadas pela pressa momentânea da posse. Um passo mais e quilos de malas de senhora revolviam-se numa longa e confusa banca, encabeçada por uma cigana mais velha carregada de oiros. Tal como certos bombons de anúncio, aquela também não era uma cigana qualquer. Esperta que nem um alho, sabia vender melhor o espectáculo de si própria do que as malas que se lhe amontoavam aos pés. Com o altifalante bem afiado e um possante microfone no repolho tosco das mãos lá ia esgoelando a sua história: - Podem escolher à vontade, minhas lindas, façam favor de escolher, 20 euros! Só peço que não me roubem, que para isso estou cá eu, a ladrona de Lamego! A cigana que rouba de noite para vender de dia! Quem passava ria-se e ela aproveitava para chocalhar vagamente os braços, contente do poder instantâneo das suas palavras, lançadas assim do poleiro da banca para a turba compradora cá em baixo. A manhã ia avançando, indiferente à hora, e os braçados tesos das nabiças começavam finalmente a definhar, com as folhas já moles no plástico descuidado das bacias. Um rasto de poeira e de suor perseguia devagar os passos apressados das senhoras, das senhoras finas de Celas (com as mãos a tilintar do discreto luxo das pulseiras) e das ajudantes de cabeleireira (a pensar já no atraso do almoço e nos muitos contratempos da enfadonha vida doméstica). Horas depois tudo tinha já desaparecido: a ladrona de Lamego, a roupa de contrafacção, os fartos ramos de salsa e as senhoras finas e não finas. Até eu.
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