Tuesday, October 31, 2006

O búzio (antes de dormir)


Búzio
sei que nunca viste o oceano,
que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte.

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.

Vasco Gato, Um Mover de Mão

Sunday, October 29, 2006

As meias da dália negra

Que Dália Negra não é um filme revolucionário, pelo menos como parece ter sido Femme Fatale na carreira de Brian de Palma? Concedo. Que Scarlett Johansson e Hilary Swank estão (mais a primeira do que a segunda) notoriamente subaproveitadas, em personagens sem muita espessura, apesar da sua potencial riqueza? É verdade. Mas nada disso retira ao filme aquilo que ele também é - um elegantíssimo exercício de estilo sobre a idade de ouro do cinema americano. Ora a elegância de um realizador não é nunca de desprezar, porque, como também sucede com as outras pessoas, é mais rara do que se pensa. E depois (mas devia dizer sobretudo), o filme de Brian de Palma tem Mia Kirshner, em imagens inesquecíveis de inocência e fragilidade. A figura trágica por excelência. A cena em que Elizabeth Short revela entre risos a sua história, rompendo as meias com as mãos para conseguir dominar as lágrimas, vale o todo do filme. Não é sequer uma cena, é um poema de amor, tragédia e morte. Numa entrevista de casting, alguém pergunta à dália negra se ela conseguiria um dia representar a tristeza. Provavelmente não, se o tentasse com a disciplina da razão, mas não conheço em cinema uma tão bela imagem da tristeza como a das suas unhas insinuando-se pelos buracos das meias. Há imagens que valem um filme e actores que o valem também. Espantosa, espantosa Meryl Streep, que faz de um filme banal (O diabo veste Prada) um filme realmente com interesse. Esta senhora, tão elegante na pele de uma requintada editora de moda nova-iorquina como na de uma mulher de meia idade do Iowa, não vale todo o filme, é todo o filme. Muito, muito de vez em quando, há actrizes assim.

Friday, October 27, 2006

A ladrona de Lamego

Há semanas atrás resolvi ir à feira semanal do Bairro Norton de Matos, onde, confesso, nunca antes tinha posto o pé e logo eu que gosto tanto de feiras de rua... Mea culpa, portanto. A manhã queimava de sol e gente na brancura dos toldos, onde boiavam ainda aromas e fumos de cozinha, como no poema do Cesário. De porcelanas reluzentes nem a sombra, mas o retalho da horta lá estava, ombro a ombro com centenas de jeans de marca roubados e outras tantas t-shirts, a preços tão incríveis como as tintas  que nelas imitavam a cor da moda: vermelhos Gant e verdes Tommy Hilfiger, prometendo descorar à primeira suspeita de água. Uma cigana jovem, de larga trança preta pela cinta, subia convicta a um banco as suas grossas meias, calçadas por fora do fato de treino escondido pelo avental de ramagens, e apregoava alegremente os produtos de boutique que dizia vender. -Isto é produto de botica! 5 euros! Olhei divertida para a fúria respigadora das clientes e logo a seguir para o perigoso desenho das saias, de costuras esgaçadas pela pressa momentânea da posse. Um passo mais e quilos de malas de senhora revolviam-se numa longa e confusa banca, encabeçada por uma cigana mais velha carregada de oiros. Tal como certos bombons de anúncio, aquela também não era uma cigana qualquer. Esperta que nem um alho, sabia vender melhor o espectáculo de si própria do que as malas que se lhe amontoavam aos pés. Com o altifalante bem afiado e um possante microfone no repolho tosco das mãos lá ia esgoelando a sua história: - Podem escolher à vontade, minhas lindas, façam favor de escolher, 20 euros! Só peço que não me roubem, que para isso estou cá eu, a ladrona de Lamego! A cigana que rouba de noite para vender de dia! Quem passava ria-se e ela aproveitava para chocalhar vagamente os braços, contente do poder instantâneo das suas palavras, lançadas assim do poleiro da banca para a turba compradora cá em baixo. A manhã ia avançando, indiferente à hora, e os braçados tesos das nabiças começavam finalmente a definhar, com as folhas já moles no plástico descuidado das bacias. Um rasto de poeira e de suor perseguia devagar os passos apressados das senhoras, das senhoras finas de Celas (com as mãos a tilintar do discreto luxo das pulseiras) e das ajudantes de cabeleireira (a pensar já no atraso do almoço e nos muitos contratempos da enfadonha vida doméstica). Horas depois tudo tinha já desaparecido: a ladrona de Lamego, a roupa de contrafacção, os fartos ramos de salsa e as senhoras finas e não finas. Até eu.

Tuesday, October 24, 2006

Chicago sound


Isto não é um clarinete. É um vago instrumento de tortura quando a saudade rói o fundo mais fundo da alma. E mexemos suavemente os dedos ao longo do cilindro tenso do seu corpo e nenhuma nota sai, tal como nos sucede a nós nos sonhos, quando abrimos em desespero a boca para a sabida inutilidade do grito. Isto não é um clarinete, é o princípio da alegria quando dois lábios iniciam, ao poderoso descompasso do jazz, a escalada inevitável do som. Como dizia o outro do seu cachimbo, isto não é um clarinete. É uma pequena história de amor.

Sunday, October 22, 2006

O passeio do poeta

Saídos da adolescência, acreditamos ainda que basta ao poeta olhar ao contrário dos outros homens, para o que guarda dentro de si, lá bem atrás dos olhos com que vê, para que a poesia aconteça, inteira, sublime e intocada quase pela mão humana. Coitados de nós, que ignoramos que o poema representa talvez uma das mais intensas impressões digitais do valor humano e que assim não pode nascer do poeta para o mundo, mas do mundo para o poeta. Se um aluno hoje me pedisse uma breve definição de poeta acho que lhe falaria apenas de um caminhante solitário, com olhos de água e uma cama lisa de palavras no profundo lugar do coração. Nem sei se o poeta passeia, mas sei que o poeta caminha, somando passos, tempos e imagens que são como linhas invisíveis que depois lhe tecem o mar tormentoso da escrita. O mundo avança, o poeta caminha, a obra nasce.

Saturday, October 21, 2006

O rendetemi la speme

Chegada a casa, a mulher ainda hesitou - a Callas ou a Mirella Freni? Talvez a Freni, uma voz mais aberta que a da Callas, mais cheia de esperança, pensou. O rendetemi la speme. Vinha cansada, com o corpo moído do excessivo peso do coração e do fulgor inesperado dos malmequeres. A mulher tinha-os levado há muito tempo para a casa do vale, embrulhados em algodão e água por receio da vertical melancolia das folhas, e plantara-os um a um, cientificamente emoldurados por pequenas pedras roubadas ao mar, na borda do muro do alpendre, sob o ninho redondo das ameixas. Amanhã estão mortos, pensou. E a cada rega a esperança do talvez não. La speme, la speme, cantava a Freni. Mas depois, durante todo o verão, a mulher esqueceu-se deles, e quando finalmente se lembrou achou natural eles terem morrido no exacto momento em que ela própria sucumbia à sentença involuntária da ruína. Naquele momento, ouvindo a Freni implorar pela enésima vez uma última dádiva de esperança, a mulher pensou sobretudo na sua matinal afronta de oiro e pétalas. Como conseguiram eles, se eu não?, pensava a mulher. Ela chegara cedo à casa do vale e sentiu logo a voz das oliveiras soletrando em silêncio o seu nome. Elvira, Elvira. Não respondeu logo, mas deu devagar uma volta pelo lado de fora da casa, confirmando com um sorriso a teimosia invernal das buganvílias e a verde suculência dos abetos. Qui la voce sua soave mi chiamava e poi sparí, disse ela de repente, primeiro só para si e depois também para a breve memória do homem em fuga. Ah, mai più assorti insieme nella gioia dei sospir. L'ingrato obllia, sussurrou surdamente a terra. Mas a mulher não ouviu, perdida mais uma vez na vertigem do mai più. Nunca mais o cheiro nocturno da relva entrando a galope pelas janelas, nunca mais os alegres jantares no terraço, longos como estradas na penumbra ociosa do poente, nunca mais o restaurante de Roma e a alegria do sino no caracol da escada, nunca mais nada, nada nunca mais, nunca nada mais. Un cor fido nell'amor sempre vive nel dolor, lembraram, ingratos, os malmequeres, de cínica crista erguida a prumo no denso cacimbo da manhã. E então a mulher compreendeu. Não me chamo Elvira, disse, e não quero dádiva nenhuma de esperança, quero apenas o dom de a não deixar fugir de mim. Os malmequeres, agastados com a repentina descoberta da mulher, viraram o seu corpo cheio de dedos de costas silenciosas para ela. Com o comando da música na mão, a mulher mexeu-se ao de leve na preguiça mole do sofá e ficou a olhar, por instantes, para o balanço das árvores lá fora, ao vento forte do fim da tarde, até que finalmente adormeceu, assim que a Freni se calou.

Wednesday, October 18, 2006

Paisagem com mulher e mar ao fundo

Quando entrou no comboio, a mulher pensou como era feliz. Tinha vivido duarante horas um pouco da vida verdadeira e isso não era pouco, era muito, se calhar era mesmo tudo. Olhou para trás e viu os carris ainda paralelos, mas logo a seguir olhou para mais longe e viu o ponto negro em que eles depois se confundiam. O coração apertou-se-lhe e encostou suavemente a cabeça ao vidro. O mar parecia calmo, apesar da cinza que caía do céu - cortinas e cortinas de água ligando o mar às nuvens. Um homem caminhava na praia como se o sol caísse a pique e mais adiante, num campo deserto de golfe, dois jogadores arrastavam os seus sacos debaixo de um imenso guarda-chuva. Entretanto começou a chover a sério e a mulher não viu mais nada. Reparou, no entanto, que do outro lado do vidro corriam rios como lágrimas aflitas - breves atalhos de água que o vento aos poucos convertia em pequenos lagos verticais. Quando chegou meteu-se no carro e foi para casa, com os olhos secos do futuro.

Monday, October 16, 2006

Sonata de Outono

Talvez estejam ainda verdes, concedo, mas em breve estarão assim, em fogo cor de beijo, como redondos sóis procurando a direcção da terra. Os olhos da mulher nada poderão ver e ela terá que pedir ao homem para usar os olhos dele. Conta-me a laranjeira, dirá, empresta-me os teus olhos nas palavras com que dirás do lume intenso das folhas e do peso incandescente dos frutos. O homem dirá está bem e uma pequena lágrima doce cairá devagar pela sua face. E a mulher dirá simplesmente sim, estou a ver agora, conta tudo, e depois voltar-se-á para dentro, para o denso caule de si própria, para ver melhor.

Saturday, October 14, 2006

A janela

Estou dentro de paredes brancas.
Quatro paredes: a minha cela,
O frio, a solidão e o meu catre.
A luz entra sempre de noite.

Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira.

Tenho um pequeno sonho de uma janela para abrir:
E que paisagem não seria estar feliz!
Daniel Faria, Poesia, 2ªed., V.N. Famalicão, Quasi, 2006, p. 57.

Friday, October 13, 2006

Uma esplanada sobre o mar


Entre uma reunião e uma conferência fui hoje ver o mar. Depois da ponte sobre a ria de Aveiro, surgem logo ao nível dos olhos as altas dunas da praia, hoje branquíssimas sob o sol enfermiço de outono. No ainda longe da ponte, pequenas manchas verdes começam a querer pousar na areia, ondulando ao vento como aranhas na busca vagarosa da presa; um pouco mais para lá do verde entristecido dos arbustos estava enfim o verde quase impossível da água. Visto de perto, o mar estava exactamente assim, impossível e absurdamente verde, com a brancura da espuma a lembrar uma fresca dentadura de anúncio. Não havia praticamente ninguém naquela esplanada sobre o mar e a praia estava quase vazia, virgem ainda, na quieta lisura da areia, dos passos descuidados dos homens. Alguns surfistas debatiam-se com a força das ondas e daí a pouco eram apenas uma série de pontos negros no verde imenso do mar. Por momentos o vento susteve o rodopio do ar e tudo parou, ao passo silencioso de uma avioneta na exacta linha da beira-mar. Às vezes há momentos perfeitos. Que bom seria se ali tivéssemos estado os dois.

Wednesday, October 11, 2006

Mon coeur s'ouvre à ta voix

A mulher deitou-se no sofá, empurrando para baixo o calcanhar direito com a ponta do pé esquerdo para se descalçar, e suspirou devagar. Oito menos dez. Ficou um pouco olhando o tecto, de olhos perdidos no mar branco da cal, e depois virou a cabeça para o lado direito, para a moldura de madeira onde havia anos colocara, cortada de uma revista de modas, a fotografia da Callas. Era uma fotografia especial para a mulher, porque não era uma fotografia do esplendor artístico da diva, como as que impõem as editoras às capas milionárias dos discos, mas uma fotografia dela já sem o canto à porta última dos lábios, porque para sempre sepultado no mais lá dentro dela própria. Esta mulher só se cantou sempre a si e nunca ninguém reparou, pensou a mulher deitada no sofá, pegando de repente no salto do pé direito e fazendo rodopiar o sapato no ar. E afinal tudo isso está aqui nesta fotografia sem data, concluiu. Bem, já devia ter sido abandonada pelo Onassis, isso com certeza, ou não teria aquela luz baça e fria no raio já descrente do olhar. Porque só olha assim para o chão quem já aprendeu que o sofrimento e a alegria moram no mesmo sítio sem nome a que os homens chamam alma. Alegria e dor são a mesma coisa nessa intensidade de água e nervos que nos mora dentro, disse a mulher baixinho, só que na Callas isso via-se-lhe logo na voz. Por isso é que ela cantava assim - com a glória toda na alma e um véu de amargura na voz. A isso também podemos chamar melancolia, mas a melancolia da Callas era muito mais do que apenas melancolia. Era a íntima aceitação do seu destino e a irremediável denúncia disso na suprema navalha que é o canto. A mulher levantou-se, pôs finalmente a Callas a tocar e, logo ao primeiro verso, lembrou-se que no dia do seu primeiro encontro com o homem era a Callas que também tocava, no carro. Mon coeur s'ouvre à ta voix, com o volume no máximo. Voltou a deitar-se até que o desenho dos montes, recortado no céu para lá da janela da sala, se apagou de vez no negro vagaroso do céu.

Monday, October 09, 2006

As palavras sepultadas

«A Maria dos Remédios disse-me hoje, e eu senti-me verdadeiramente a máscara dela:
- Espantoso que seja muito mais cómodo ser infeliz do que feliz. Porque se eu e o Humberto quiséssemos... Uma simples questão de esforço, de esforço persistente, de combate sem tréguas!
Sempre que eu e o Humberto nos dispomos a tal esforço, a ir à busca de certas palavras sepultadas, perras, difíceis de trazer à vida por falta de uso...! Sim, quando vamos desencantar ao passado, ao presente, até ao futuro, dentro ou fora de nós, palavras que nos permitem participar um do outro, então somos felizes. E aí tens o jogo bem mais fácil: procuro em ti uma parte da felicidade que não encontro com ele, sabes porquê? Porque estar nos teus braços é, de certo modo, mergulhar no tal mundo imaginário e difícil que dá a felicidade, mas de uma maneira mais simples: não precisamos de achar palavras novas, gestos novos; as palavras que entre mim e ele se tornaram gastas, ainda são novas, ainda são cristalinas se eu e tu as dissermos um ao outro. Sem esforço, atinjo contigo o tal mundo dramático, o tal mundo diferente do mundo esvaziado pelo hábito... E por isso aqui venho.»
Augusto Abelaira, Bolor, Lisboa, Bertrand, 1976 (1968), p. 136.

Sunday, October 08, 2006

O silêncio da fotografia - 2


Se estivéssemos agora no meio da Praça de São Marcos, em Veneza, olhando atentamente na direcção das duas colunas que, ao fundo, delimitam a fronteira entre a terra que acaba e a água do Canal que principia, jamais veríamos o que esta fotografia nos dá a ver - a largueza da praça maior da cidade e a ténue suspeita da água, que se adivinha um pouco mais para lá, depois das tais colunas erguidas a prumo. Antes de mais, porque acabaríamos, provavelmente, por ver a mesma praça um pouco mais à frente, em relação à posição em que estava o fotógrafo, ou mais ao lado, ou mais atrás, ou ainda lançando sobre as pedras e os palácios um olhar um pouco mais distante, semicerrando os olhos por causa do sol. Depois, porque esta fotografia é ela própria, em simultâneo, uma imagem da praça veneziana de São Marcos e a sua opacificação na posterior verdade da lente, uma vez que ela opera obrigatoriamente uma redução subjectiva de todo o campo visual disponível a quatro breves linhas que impedem a hemorragia desse mesmo real, agora aprisionado pela câmara (ia a dizer emoldurado), para todos os lados onde também está o que a fotografia já não mostra. Assim: onde está o Palácio dos Doges, de que só se vê o extremo, perto da linha da água? E onde a Catedral de São Marcos, um pouco mais ao lado, no recolhimento lateral da praça? É que a fotografia possibilita sempre a quem a vê o desenvolvimento de um olhar oblíquo sobre o mundo à nossa frente, capaz, portanto, de identificar o lugar exacto dessa fractura entre o real que vemos e o mundo fotografado. É caso para dizermos: nunca veríamos esta imagem de São Marcos mesmo que a víssemos ao natural. E se estivéssemos de facto lá, com esta (ou com outra) fotografia na mão, saberíamos talvez melhor onde inscrever essa fenda, esse pequeno espaço de silêncio entre o real à nossa frente e a fotografia na nossa mão. E então o movimento pendular da nossa cabeça, oscilando entre o real palpável da praça e a sua representação fotográfica, acabaria por corresponder a um movimento igualmente pendular entre a realidade dos palácios, por um lado, e a sua perturbadora negação, por outro. Decerto nunca houve, na realidade visível de Veneza, nem aquela hora, nem aquela luz, nem aqueles pombos poisados no chão, nem sequer a sombra daquele homem que atravessava a praça a passo largo e com uma pasta de negócios na mão. O instantâneo do disparo deixou-lhe eternamente o pé no ar, numa imobilidade de estátua, e isso é justamente o mais bonito da fotografia. E o mais comovente também.

Friday, October 06, 2006

Como morre o amor a sua morte


A mulher pegou na carteira e saiu. Sobre o tampo escuro da mesa ficara apenas o desenho invisível da ruína, uma ruína de pedras e de impérios, de saberes secretos e de sonhos inconclusos, de palavras por dizer e de outras já tão ditas. Olhou de relance para trás e na tímida contraluz da manhã estavam ainda marcas confusas de dedos na superfície lisa da madeira. Como morre o amor às mãos dos homens. Como morre o amor a sua morte. Enquanto carregava no botão do elevador, lembrou-se de repente do verso da Isabel Cristina Pires e repetiu-o vezes sem conta ao longo do percurso descendente dos números. Como morre o amor a sua morte, como morre o amor a sua morte. Lá fora havia sol e uma espécie de frio de oiro despertou-a daquela recitação absurda que por instantes pareceu travar-lhe a alma. Já dentro do carro espantou-se de o mundo estar, aparentemente, tão inteiro. Os carros desciam a avenida com a pressa do costume, roubada talvez aos aviões, o senhor da frutaria compunha legumes frescos numa habilidosa sinfonia de verde e duas crianças saíam do café com enormes chupa-chupas na boca. A mulher ainda esperou pelo ramalhete rubro das papoilas, mas ele não apareceu - devia ter descido à terra com a lenta derrocada do império, pensou. Ela bem queria dizer ao mundo que o mundo estava morto e que era por isso necessário começar a morrê-lo a cada dia, começar a morrê-lo até que dele nada mais restasse, como sucede com as ocas carcaças de animais nos vastos e profundos desertos da terra. Mas a mulher nada disse e nem assim se ouviu o que ela tinha para dizer. Mais ao fundo da rua, perto da rotunda, viu distintamente uma moça nova a cantarolar dentro do carro, de óculos de sol e sorriso aberto nos lábios, que depois arrancou alegremente ao verde redondo do sinal, indiferente, como todos os outros, à anunciada morte do mundo. A mulher pensou como era triste o mundo ter morrido sem que ninguém o soubesse a não ser ela, mas não insistiu mais. Voltou para casa e ficou muito tempo deitada na cama, a ouvir com atenção o rolar distante dos carros lá em baixo. Não voltou mais à janela porque sabia que nada mais havia para ver. E tinha razão. O mundo jaz morto e arrefece.

Thursday, October 05, 2006

Os HUC ou a hermenêutica do sofá

Voltei há dias atrás aos Hospitais da Universidade de Coimbra, felizmente não para internamento (o que nos afivela logo o olhar à cama ou ao serviço que nos recebe), mas apenas para uma consulta externa de imunoalergologia. A coisa tem a sua complexidade, a começar pela hora absurda a que a maioria das pessoas é levada a levantar-se para conseguir atendimento assim que abrem os guichets e começam a chegar os médicos. Primeiro são os guichets da burocracia, que abrem às oito horas e onde cheguei aí pelas sete. Na penumbra da sala encontrei já umas quatro pessoas, sentadas nos sofás perto dos guichets e a quem perguntei se estavam na fila. Estavam. Fixei mentalmente o meu lugar e sentei-me, com a conversa rolando solta ao meu lado esquerdo. Dois senhores de idade comparavam alegremente os seus cartões, falavam de possíveis isenções de taxas e da necessidade de trazerem da próxima vez a respectiva declaração de IRS. O mais velho explicava, apontando o dedo para o seu cartão do SNS, que por ter nele impressa a letra T era anualmente obrigado a isso.
- E que letra é a sua?
- Tenho um S.
- Então não precisa. Significa o máximo, que pode pagar o máximo.
Olhei discretamente para o meu - outro S. Suspirei baixinho. Oito menos dez e chega um grupo de gente que se põe logo em sentido frente ao guichet. O senhor da letra T levanta-se e explica ao primeiro usurpador que a fila tinha já umas quantas pessoas antes deles - nós. - Isso não me interessa. A fila é aqui no guichet, não no sofá.
- E o senhor acha justo estarmos aqui nós há mais de uma hora e vir agora o senhor com toda esta gente meter-se à frente?
- Não quero saber. Na semana pasada também eu estava sentado naquele sofá além e quando o guichet abriu meteu-se uma série de gente à minha frente. Eu também não gostei e foi a senhora que depois me atendeu que explicou que a fila é aqui e não no sofá.
- Então se não gostou do que lhe fizeram por que é que está a fazer o mesmo aos outros?
- Então, todos temos que nos desenrascar. É a vida.
Um casal com uma criança pequena ao colo rosnou ainda, esperançado - eu ria-me era se depois disto tudo as crianças têm prioridade...
Os guichets eram muitos e tudo andou finalmente depressa. Quando cheguei ao secretariado do serviço onde tinha a consulta vi logo a serpente de cartões verdes marcando prioridades e ordens de chegada. Fui muito bem atendida, com profissionalismo e atenção, como sempre fui nos HUC, que de facto tem serviços de excepção. Mas enquanto esperava pela minha vez ia olhando sempre, a tentar compreender: senhoras vindas de longe e que, de quando em quando, iam agradecendo humildemente uma coisa que não sabiam talvez ser do seu direito; homens de camisa ao xadrez e calças fininhas de poliester, de barriga à taxista e cinto descido, à espera de uma oportunidade para perturbar o sistema como o homem do sofá; velhinhos a acompanhar as esposas (não mulheres, mas esposas); mulheres novas, de barriga flácida à mostra e chiclete persistente na boca, queixando-se do inferno dos transportes e das horas de sono que tiveram que roubar aos filhos. Eu não conduzo táxis nem uso cintos descidos, não tenho uma esposa para acompanhar e muito menos filhos ensonados para deixar na escola. Nem sequer te procurei a ti enquanto lá estive, mas foi bom chegar depois cá fora, ao sol envergonhado da manhã e ao vento que soprava do norte, e caminhar devagar por entre as ambulâncias em fila e os táxis de Arganil e Sever do Vouga.

As manhãs do mundo

Stephen King, Forrest dawn
Foi há muitos anos que a mulher ouviu falar nas duras manhãs do mundo. Nem foi talvez há muito, o que são cinco ou seis anos na vida de uma pessoa? Ora, seis anos é muito tempo, se o contarmos não por dias ou estações, mas pelo que em nós passa ao longo desse passar. E ela repetia a cada manhã aquele inimitável verso do Manuel Gusmão - «é de novo uma manhã do mundo» - dizia. Já então ela sabia que este era o primeiro verso de um poema que depois caminhava sozinho, alongando-se na página como se tudo fosse fácil - como se fosse fácil aceitar o advento da manhã depois do antes contido na noite e como se o escrevê-lo fosse tão natural também como a dádiva primeira da luz, impondo-se ao dia do mundo depois do recolhimento da treva:
É de novo uma manhã do mundo. Dormia leve no sono
e sente que te levantaste. Procura-te e estás ali na varanda
da frente. Está frio e dizes que tens calor.
Fumamos contra o negro que reflui muito lento.
O estarmos ali os dois é o vago som de um tio entre nós.
Até que quase de súbito se expande um branco baço -
é a névoa do dia que começa. Apagam-se as luzes de presença
depois os candeeiros na rua. O céu, a montanha, o rio
e a ruína que a todos interrompe são apenas tons
de um branco que fosse uma imensa paz ou
uma morte quase
quase já reconhecida.
Pássaros e gatos povoam o pequeno mundo de aloendros,
palmeiras e silvas, cujas cores escrevem a névoa branca
que as apaga esquece e escuta.
Aquele procura alguma coisa perto da sebe que guarda a ruína.
Entre a febre e o frio somos também nós que nascemos?
ou estamos já morrendo?
(Manuel Gusmão, Teatros do Tempo, Lisboa, Caminho, 2001, p. 87.)
A mulher sempre soube que estas palavras guardavam muito da sabedoria medieval do amor e percebia bem por que, no caso do poema, era a manhã tão inimiga desse homem ánónimo que dormia e da mulher que se levantava para ir olhar o mundo da varanda do quarto, mas não encontrava nisso nada de semelhante com as suas manhãs, nem com todas as noites vividas antes delas. Tiveram que passar-se muitos anos até ela perceber que as manhãs do mundo são afinal muitas e a muitas horas distintas: elas podem ser o fim e podem também ser o início, podem ser a morte ou a confiança ainda numa noite por haver, podem trazer a necessidade de partir, mas trazem também a esperança no depois

Tuesday, October 03, 2006

O silêncio da fotografia - 1

Geneticamente impossibilitado de exprimir-se pelo som, o silêncio procura por vezes, no campo visual, a divulgação do seu próprio corpo - e se não pode ouvir-se, a verdade é que o silêncio pode, por exemplo, ver-se materializado na imobilidade dos seres e das coisas. Mas a imagem fotográfica desta mulher, surpreendida pela câmara no instante do movimento que o clique do fotógrafo tratou de paralisar é, não só, uma imagem silenciosa, como também uma imagem mentirosa - sabemos bem que não retratar tudo o que o fotógrafo pôde ver antes de premir o botão significa, a seu modo, silenciar o que também lá estava e ele de repente não quis que estivesse. Porque, na verdade, a mulher não estava de cabelo solto, mas com um gancho preso no alto da cabeça, onde ela poisava singelamente a mão e que lhe deixava a nuca a descoberto. Caía-lhe pelas costas uma madeixa descuidada de cabelo, esquecida ou abandonada no movimento ascendente dos dedos, e esse era talvez o único ruído da fotografia. Havia ainda silêncio no todo do quarto, antes e depois do amor, e a mulher lembrou ao homem como tudo estava quieto e como a única presença do mundo ali dentro era a da gota de água que ritmicamente tombava do beiral e que a mulher podia ver, sempre que virava a cabeça, entre a borda da cortina e o canto da janela. Ainda lá deve estar, ao lado da cama, uma chávena vazia de café que também não coube na fotografia e o rasto de um búzio que a mulher trouxe para si. O homem levou apenas uma fotografia da mulher, talvez para repor um dia a verdade enganosa do fotógrafo, ou simplesmente para prolongar um pouco mais o milagre de terem sido juntos.